“Correlação não é causalidade!” O mote repetido por quem examina gráficos e dados hoje em dia tem um substrato que permeia questões mais sutis ainda. Tomemos as perguntas “Existe livre-arbítrio?” e “Estamos no comando de nossos atos?”.

Muitos responderiam inequivocamente “sim” às perguntas acima. Mas a reflexão sobre a questão do livre-arbítrio, além de não ser tão simples, requer uma passagem obrigatória pelo problema da causalidade em geral e da causação mental em particular. E essa discussão é inescapavelmente filosófica.

Tudo o que está em mutação, o está por ação daquele que o causa… Nada pode, separado daquele que o causa, assumir o devir.

Platão, Timeu

 

[…] a lei de causalidade, creio eu, como muito do que é aprovado entre filósofos, é uma relíquia de tempos idos, sobrevivendo, qual a monarquia, somente por se supor erroneamente que nenhum mal cause.

Bertrand Russell, discurso para a Aristotelian Society, 1912.

O Princípio da Causalidade pode ser definido, de maneira simplória, como o princípio de que nada pode acontecer sem que seja causado por outra coisa. Uma abordagem da própria relação também é possível, ao se definir que Causalidade é a relação mesma de causa e efeito. Mas não é tema banal em Filosofia, além de ser comumente mal compreendido por cientistas (de físicos a economistas). Sua particularização na categoria de causação mental não é menos complexa.

Causação mental

A causação mental se debruça sobre as possíveis relações causais que envolvem estados mentais. Por estado mental, entenda-se algo como uma sensação abstrata mental (na falta de melhor expressão) acerca de algo. Difere do chamado processo ou evento cerebral, que seria a configuração física (neurônios, neurotransmissores, etc) do fenômeno mental.

Deve-se, assim, tentar explicar (1) como alguns estados mentais são causados por estados do mundo, como quando ficamos felizes ao ver uma pessoa querida; (2) como alguns estados mentais causam ações, como quando pegamos voluntariamente na mão dessa pessoa querida; e (3) como alguns estados mentais causam outros estados mentais, como quando uma alegria causa a vontade de abraçar. São, respectivamente, relações causais nas direções (1) do físico para o mental, (2) do mental para o físico e (3) do mental para o mental.

Descartes

O filósofo francês René Descartes é um dos primeiros grandes referenciais no tema. Defendia um dualismo de substâncias, em que o mental, substancialmente separado do físico, interagiria com este e teria, assim, poder causal sobre ele. Suas discussões de alto nível com a princesa da Boêmia sobre o assunto já mostravam que a construção cartesiana para justificar as ações humanas seria alvo de dúvidas importantes. Hoje em dia, poucos defendem essa via para explicar a causação mental.

Apesar de suas ideias terem sido alvo de fortes críticas, o dualismo de substâncias ainda tem um grande apelo perante o senso comum, que, em grande parte, acredita na existência de um verdadeiro “fantasma na máquina”, utilizando-se da expressão do filósofo Gilbert Ryle. De todo modo, filósofos normalmente não se satisfazem com intuições do senso comum.

Reflexão contemporânea

Com a evolução da ciência em geral e da neurociência em particular, o efeito causal dos processos cerebrais tomou lugar de destaque e não pode ser deixado de lado em uma discussão séria sobre o tema. Além disso, essa abordagem enfraqueceu teorias que não levem em conta tais processos neurais enquanto elementos integrantes da relação ou cadeia causal que explica a interação do mental com o físico.

Para o professor William Jaworski, a tensão surgida entre (1) a noção de que temos uma consciência que se manifesta em estados mentais e que controla nossas ações e (2) o nosso entendimento científico acerca dos mecanismos físicos envolvidos nessas tarefas é o que compõe e instiga a atual reflexão sobre causação mental.

A questão fulcral é como se relaciona a causa mental de uma ação com sua causa física. Há a nítida impressão de que um estado mental tenha poder causal sobre nossas ações, mas há, também, o fato inegável de que os processos físicos pareçam ter essa característica. Haveria duas causas para o mesmo fenômeno? A ideia de sobredeterminação, em que ambos tenham, ao mesmo tempo, esse poder causal, não parece ser de todo promissora, por agregar elementos aparentemente redundantes ao processo. Seria uma afronta à navalha de Ockham1 e algo não facilmente digerível por filósofos.

Dependendo do ponto de vista, esse problema se resolve de maneiras diferentes.

Filósofos da corrente Eliminativista preferem considerar que não há algo como eventos mentais, mas, tão somente, processos cerebrais. Pretendem, assim, resolver o problema desconsiderando-o enquanto tal.

Os chamados Epifenomenalistas, por seu turno, concordam que existam eventos mentais, mas consideram que estes não têm poder causal, sendo meros fenômenos que aparecem juntamente com os processos cerebrais. Muitos não consideram isso convincente e há poucos filósofos que se professam epifenomenalistas. Tal entendimento tornaria os eventos mentais meros apêndices sem aparente justificativa para existir, em um verdadeiro paralelismo inútil.

O filósofo coreano Jaegwon Kim lembra que muitos neurocientistas, curiosamente, parecem defender, mesmo sem se dar conta, a posição epifenomenalista. Isso pode se dever a uma falta de rigor filosófico na análise e na exposição de seus trabalhos. Há, de fato, uma refratariedade ao esforço de se pensar a respeito de temas que demandam uma interação entre áreas diversas do conhecimento. Isso não acontece somente com cientistas, registre-se.

Os Emergentistas, um outro grupo, também acham que há um paralelismo entre estados mentais e processos cerebrais. É importante registrar que, segundo Kim, “uma importante diferença entre emergentismo e epifenomenalismo é que o primeiro, ao contrário do segundo, reconhece o poder causal e a eficácia do fenômeno mental emergente”.

Dualistas de substância hodiernos (os “filhos” de Descartes) e alguns Emergentistas entendem que as leis da física podem, sim, ser suspensas ou violadas em algumas situações, quando a mente subverteria a ordem causal clássica de eventos físicos e isso explicaria a causação mental. Isso soa demasiadamente místico para vários filósofos.

Há, além disso, a possibilidade de se defender a Teoria da Identidade, segundo a qual eventos mentais e processos cerebrais existem, mas são uma só e única coisa, talvez nomeada de maneira diferente – assim como água e H2O referem-se a uma só entidade física. Poderia existir, sim, sobredeterminação, não havendo problema em se considerar que as ações possam ter mais de uma causa suficiente e independente, no caso, sobrepondo-se.

Novas abordagens

Aparentemente, algumas dessas pretensas soluções filosóficas terminam por atingir posições de difícil ou instável sustentabilidade. Não será possível discorrer, aqui, sobre as minúcias das diversas correntes. É digno de nota, no entanto, que algumas das novas abordagens tentam contornar os principais problemas citados, destacando-se, sobretudo, a tentativa preponderante de se evitar o Epifenomenalismo (aquele no qual inadvertidamente caem vários neurocientistas), considerado inadequado.

O filósofo Ian Ravenscroft enfatiza a importância do conceito de “relevância” no entendimento da causação mental. Para ele, seus colegas Frank Jackson e Philip Pettit trabalharam bem o tema e fizeram uma importante distinção entre (1) eficácia causal e (2) relevância causal.

Um estado mental (ou propriedade mental, expressão mais cara a eles) é causalmente eficaz quando é, de fato, a causa de algum efeito.

Um estado mental é, por outro lado, causalmente relevante quando chega a “programar” (termo utilizado pelo autor) no sentido de uma dentre várias propriedades possíveis, estas, sim, causalmente eficazes em si.

Pode-se tomar como exemplo um grito de medo. O estado de medo não é causalmente eficaz, pois não causa o grito. No entanto, o estado de medo é causalmente relevante, pois pode programar para o tipo de estado físico ou propriedade que é causalmente eficaz, ou seja, que causa, realmente, o grito. O medo, assim, não é causalmente eficaz, mas tem seu lugar na explicação causal do grito. É, assim, relevante.

Nota-se, aqui, que os estados mentais são causalmente excluídos, admitindo-se, tão somente, sua relevância. Há um certo risco, nessa concepção, de se reduzir a cadeia causal a seus fundamentos físicos e químicos, tornando tudo o mais meramente “relevante”, mas não eficaz. Além disso, essa divisão conceitual, mesmo podendo ajudar no entendimento da causação mental, parece algo forçada demais.

A causalidade para Elizabeth Anscombe

Uma elegante abordagem sobre causalidade e que pode abrir os horizontes da discussão é a da grande filósofa do século XX Elizabeth Anscombe. Ela procura não se prender a eventos e a causas mais imediatas e simplistas para os fenômenos, principalmente os da ação humana. Além disso, denuncia que a discussão sobre causalidade tem tradicional tendência a assumir uma abordagem permeada por um inescapável componente metafísico, dada a caracterização frequente de necessidade e de universalidade como essenciais à noção mesma de causalidade. Isso incomodou filósofos como David Hume e, também, Bertrand Russell .

Anscombe, por seu turno, enfatiza a noção de derivatividade de um efeito a partir de suas causas como o núcleo da causalidade, ou seja, aquilo que a constitui. A filósofa muda o foco de abordagem da questão, reconhecendo a multiplicidade de relações causa-efeito, renegando uma teorização por demais sistemática no tema e, também, criticando a ideia de generalizações que não admitam exceções.

Quando tentamos seguir a cadeia causal fisiológica de nossas ações, chegamos a uma lacuna que pode ser preenchida pelos processos cerebrais relativos a crenças, desejos e intenções, ou, dependendo de sua preferência filosófica, por algo mais mentalista e espiritual. Anscombe indica que há, no entanto, toda uma gama de processos cerebrais que podem estar relacionados a crenças, desejos e intenções e que nenhum deles é condição suficiente para explicá-los, pois estes referem-se sempre a um caso particular, a um “sujeito aqui e agora”.

As intenções, no seu entender, podem causar ações, mas seria equivocado afirmar que, para uma ação ocorrer em concordância com uma intenção pré-existente, é necessário que tenha sido causada por esta.

Pode-se examinar a relação causal da ação como uma cadeia de poucos elementos, praticamente imediata. Um exemplo seria o simples ato de se fechar uma porta. Mas pode-se examinar, também, toda uma história por trás de um dado ato, em uma complexa cadeia (ou teia causal). Um exemplo seria o de Henrique VIII rompendo com Roma porque desejava ter um filho e pretendia, para isso, trocar sua esposa, a rainha, por outra (algo impensável para a igreja católica romana).

Além disso, as exigências do caso concreto, “os encontros acidentais, a concatenação de eventos com aspectos do temperamento e dos fatos dos excitamentos das outras pessoas – tudo isso vai contribuir com causalidades de vários tipos para o evento”. Essa abordagem, menos presa a conceitos rígidos e aos fantasmas da necessidade e da universalidade, contribuiu bastante na discussão sobre causalidade e ação humana.

Abordagem contextualista da causalidade

Uma análise interessante do problema da causação mental é aquela provida pela abordagem contextualista. O filósofo Terry Horgan e seus colegas fazem um interessante apanhado dessa posição. Registram que o estudo do contextualismo sobre causação é recente, tendo começado por volta de meados dos anos de 1980.

De modo geral, Horgan define que “contextualismo acerca de um grupo particular de declarações é a visão de que o significado e as condições de verdade de declarações naquele grupo dependem de fatos acerca da situação na qual tais declarações ocorrem”. Trata-se de uma conceituação cheia de jargões filosóficos, mas que pode ser simplificada.

A própria filosofia da linguagem já teria dado uma motivação para tal abordagem, ao tratar da evidência linguística da sensibilidade ao contexto das afirmações em geral, inclusive das afirmações causais (não abordarei essas minúcias aqui).

Do modo simplificado que pede este artigo, pode-se dizer que o contextualismo diz respeito, como se desdobra de seu nome, ao contexto em que se dá determinada interação (linguística, mental, etc).

Os contextualistas defendem que tanto causas quanto condições de fundo (“background conditions”, no termo original em inglês) são, concretamente, fatores causais. Alguns pensadores fazem distinção de relevância entre os dois elementos, mas, no geral, colocam-nos na cadeia causal.

Horgan afirma, contudo, que aquilo que vai contar como fator causal depende sobremaneira de características do contexto. Esse contexto pode se referir a hábitos, a experiências presentes ou prévias e a tudo que pode dar significado ao contexto mesmo.

Indicam, ainda, que uma posição contextualista sobre causação não sugere que ela seja eminentemente subjetiva. Sugere, na verdade, que parâmetros implícitos (no contexto) governam, de fato, o conteúdo específico de afirmações causais.

Neurociência e causalidade

Não se nega, no entanto, que exista, sim, um importante e substancial núcleo objetivo na causação. Seria aquele ao qual pertenceriam os processos cerebrais.

Em relação a esse núcleo, a ideia de “critérios neurais”, bem desenvolvida pelo neurocientista cognitivo Peter Tse, indica a possibilidade de que certas conformações ou trilhas neurais possam surgir e se estabilizar, a partir de fatos, escolhas, hábitos ou eventos externos.

Essas conformações neurais teriam uma relação causal com as ações voluntárias. Tse chama isso de causação por critério e entende que tal modelo descreve bem a causação mental. Isso pode vislumbrar um caminho promissor de entendimento acerca de como certos eventos encadeados ou em rede e o próprio contexto podem deixar marcas físicas (neurais) que indicam caminhos causais relacionados a escolhas e ações. Um dos objetivos de Tse é tentar fundamentar o livre-arbítrio.

O já citado Horgan acrescenta que proeminentes abordagens não-contextuais não conseguem superar convincentemente os problemas postos pela causalidade e pela causação mental. Sendo assim, dada a plausibilidade da visão contextualista sobre causação, talvez esta última corrente se mostre como um caminho possível de se evitar o Epifenomenalismo (vide acima, armadilha na qual caem cientistas ingênuos ou autossuficientes). Por fim, afirma que “defendemos que os problemas ligados à causação mental podem todos ser esclarecidos e finalmente evitados pelo reconhecimento de uma importante característica da natureza das afirmações causais: a sua dependência em relação ao contexto”.

Conclusão

Talvez essa abordagem conceitual menos linear e mais complexa da causalidade, que vem desde Elizabeth Anscombe, somada a descrições mais minuciosas e sutis do mundo objetivo (do cérebro, no caso da causação mental), como faz um neurocientista como Peter Tse, possam apontar para uma solução mais verossímil e estável da questão. Dentre inúmeras causas, como escolher qual delas informa melhor acerca do fenômeno examinado? Uma descrição física de facetas do mundo, se não esgota, pode delimitar melhor a discussão do problema?

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Fontes e dicas de leitura

ANSCOMBE, G. E. M. The causation of Action. In: GEACH, M.; GORMALLY, L. (Ed.). Human, Action and Ethics – Essays by G. E. M. Anscombe. Exeter: Imprint Academic, 2005. p. 89-108.

ILLARI, P.; RUSSO, F. Causality: Philosophical Theory meets Scientific Practice. Oxford: Oxford University Press, 2014.

GONÇALVES, J. C. Guilherme de Ockham. In: Logos Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa: Editora Verbo, 1999. p. 955-962.

HORGAN, T.; MASLEN, C.; DALY, H., Mental Causation. In: BEEBEE, H.; HITCHCOCK, C.; MENZIES, P. (Org.). The Oxford Handbook of Causation. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 503-533.

JAWORSKI, W. Philosophy of Mind. Chichester: Wiley-Blackwell, 2011.

KIM, J. Philosophy of Mind. 3. ed. Boulder: Westview Press, 2011.

RAVENSCROFT, I. Philosophy of Mind. Oxford: Oxford University Press, 2005.

RUSSELL, B. On the Notion of Cause. In: SLATER, J.; FROHMANN, B. (Org.). The Collected Papers of Bertrand Russell, Vol. 6 Logical and Philosophical Papers, 1909-13. Oxford: Routledge, 1992. p. 190-210.

RYLE, G. The Concept of Mind. Chicago: New University of Chicago Press, 2002.

TEICHMANN, R. The Philosophy of Elizabeth Anscombe. Oxford: Oxford University Press, 2008.

TSE, P. U. The Neural Basis of Free Will – Criterial Causation. Cambridge: The MIT Press, 2013.

  1. A famosa atitude de Guilherme de Ockham pode ser rotulada como “princípio de economia” e, ainda, assumir a forma de expressões como “nunquam ponenda est pluralitas sine necessitate”. Sua gênese vem do contraste entre o homem e o divino – sendo consciente da impossibilidade de reduzir os desígnios de Deus aos seus, o ser humano deve agir com verdadeiro pragmatismo, despendendo o menos possível para atingir o maior resultado. “É um princípio que está constantemente a ser utilizado por Ockham, de que resultaram profundas alterações, no âmbito da ciência e da filosofia” (GONÇALVES, 1999, p. 960).