Somos realmente responsáveis, em última instância, por nossos atos? Existe livre-arbítrio? Não é nada claro como a consciência poderia provocar um ato tido como voluntário.
A questão da liberdade de modo geral e a do livre-arbítrio em particular são temas ancestrais do pensamento filosófico e seus inúmeros desdobramentos abarcam desde descrições e justificativas para singelos atos individuais de vontade até tentativas de se elaborar princípios universais de conduta e de possibilidades de ação, coletivas ou singulares. Nesse âmbito, a querela entre (1) a certeza da possibilidade do agir puramente voluntário e (2) o agir limitado por elementos de natureza determinística tem estado presente de maneira evidente, sob variadas matizes.
Intuição ingênua?
É preponderante (para dizer o mínimo) a noção intuitiva forte de que os atos considerados voluntários têm uma relação estreita com um componente volitivo consciente prévio à sua concretização. Nessa abordagem específica, no entanto, não resta claro como a consciência poderia provocar um ato tido como voluntário. Pode-se notar uma comum noção de causalidade mesma dessa pretensa relação.
Nesse particular, ponderações acerca da causalidade já foram postas por eminentes filósofos, desde Hume, que entendia a causação como mera conjunção regular de fenômenos que levam à crença de sua existência1, a Bertrand Russell, que, com sua verve de pura ironia britânica, escreveu o famoso trecho de seu discurso presidencial para a Aristotelian Society em 1912, afirmando que “[…] a lei de causalidade, creio eu, como muito do que é aprovado entre filósofos, é uma relíquia de tempos idos, sobrevivendo, qual a monarquia, somente por se supor erroneamente que nenhum mal cause.”2
No que diz respeito à causação mental dos atos voluntários, a aceitação de sua existência é praticamente automática. Mas há algo que sustente esse entendimento para além da mera intuição?
Os experimentos de Benjamin Libet
No último quartel do século XX, trabalhos publicados pelo neurocientista Benjamin Libet3 parecem ter desafiado radicalmente a noção de livre-arbítrio, de atos voluntários e de volição e sua inter-relação, deixando à mostra como certas abordagens científicas podem compor, delimitar e incrementar abordagens filosóficas.
Ele levou a cabo experimentos de registro de atividade elétrica cerebral ligada ao movimento muscular voluntário da mão e à consciência desse ato que indicam que há início de atividade elétrica cerebral (chamada por ele de “readiness potential”, que seria um potencial pré-motor) ligada ao movimento cerca de 500 a 550 ms antes do mesmo e há consciência da intenção de agir (no sentido de desejo de agir – chamado de tempo W) somente cerca de 350 a 400 ms após essa primeira atividade cerebral, esta aparentemente inconsciente (ou pré-consciente), e cerca de 200 ms antes de se iniciar o movimento corporal (chamado de tempo P).
É como se o cérebro já soubesse, de antemão, qual ação seria tomada antes mesmo de o indivíduo adquirir consciência da mera vontade de agir. A autonomia perante os próprios atos seria uma ilusão?
Para tentar salvar a ideia de livre-arbítrio, Libet imaginou que, no citado intervalo de 200 ms (W-P), o fator consciente poderia interferir na concretização do ato, mas na forma de um poder de veto sobre ele. Esse suposto mecanismo de controle não exclui o livre-arbítrio, mas muda sobremaneira o que se entende como ato voluntário e tem implicações sobre a natureza mesma do que seja livre-arbítrio, sobre a responsabilidade individual e sobre a ideia de culpa. Vai, assim, de encontro a várias abordagens filosóficas que são eminentemente especulativas e não testáveis4.
A tentativa de eleger um poder de veto dessa natureza como garantidor do livre-arbítrio sofre do vício de ser uma especulação não testável e nunca foi muito bem aceita. Por outro lado, os achados de uma atividade cerebral que precede a consciência da vontade de agir deixaram uma pulga atrás da orelha entre cientistas, psicólogos e filósofos. O determinismo teria liquidado a tão cara ideia de livre-arbítrio?
Desdobramentos da questão
Desde a publicação de seu trabalho pioneiro, em 1983, até hoje, há inúmeras outras publicações concordando ou discordando de suas conclusões e o assunto ainda está pleno de discussões, notadamente entre neurocientistas, filósofos da mente e filósofos da ação. Críticas contra a acurácia técnica de seu método, por exemplo, não foram raras.
Trevena e Miller5 entendem que a utilização do “readiness potential” não representa o método mais acurado para os propósitos da investigação, além de defenderem que a atividade elétrica cerebral detectada por Libet no caso de movimento voluntário não se diferencia do caso de se decidir não executar o ato6.
O filósofo Daniel Dennet7 acha incoerente que um poder de veto, para ele causação uma mental não explicada por Libet, possa ter o poder quase mágico de modificar uma decisão, o que descambaria para um retrocesso a um certo cartesianismo com dualismo de substância.
A revolução das novas tecnologias da Neurociência
No entanto, de modo peculiar, Fried, Mukamel e Kreiman8, baseando-se no modelo experimental de Libet e tendo utilizado análises inéditas de pequenos grupos de neurônios com eletrodos implantados diretamente no cérebro de humanos, reportaram achados impressionantes e de uma acurácia inédita, apresentando evidências de que atividades pré-conscientes não só precedem a volição como podem prever essa volição e seu momento de ocorrência, além de explicitar minúcias novas do processo cerebral da volição. Isso oferece uma perspectiva genuinamente renovada em relação ao problema e representa o cerne deste trabalho.
Inicialmente e de maneira inédita, decidiu-se utilizar voluntários já portadores de eletrodos intracranianos implantados por motivos clínicos e repetir-se o experimento já clássico de Libet.
O grupo estudado deveria observar um relógio com ponteiro único em movimento e informar em qual posição do ponteiro ele decidiu mover o dedo (tempo W) para apertar um botão – o tempo em que se deu o aperto (tempo P) seria medido automaticamente pela máquina. A variação, em relação a Libet, foi a possibilidade, para alguns voluntários, de decidir qual membro utilizar (direito ou esquerdo), além de quando realizar o movimento, decisão esta comum a todos.
Assim, conseguiu-se uma alta acurácia temporal, espacial e a possibilidade de se estudar um pequeno grupo de neurônios (até algumas poucas unidades). Essa conjunção de análises possíveis é muito rara e rendeu achados interessantes.
O gráfico inicial a seguir mostra que foram encontrados intervalos temporais compatíveis com os achados temporais originais de Libet quanto ao intervalo entre a decisão volitiva de se apertar o botão e o aperto mesmo.
Diante da hipótese de haver sugestionamento dos voluntários estudados nesse modelo experimental tanto pelo movimento do ponteiro do relógio quanto pelas instruções mesmas do que se deveria fazer (“cued action”), os autores argumentaram que: (1) há uma uniformidade sólida nos achados temporais e suas variações; (2) houve muito poucas vezes, no universo do estudo, em que se registraram ações entendidas como sugestionadas por estarem no lapso temporal de 1500 ms da primeira revolução do relógio e (3) não foi observada nenhuma diferença clara nas respostas neurofisiológicas entre essas poucas decisões precoces e aquelas após mais de 5000 ms depois da primeira revolução do relógio.
O gráfico abaixo é ilustrativo:
Ainda, quanto à subjetividade do tempo W (consciência da decisão – vontade de mover), em neurônios do lobo frontal houve impressionante e uniforme correlação entre esse tempo (definido pelo indivíduo estudado) e o recrutamento neuronal anterior a ele, mesmo que se deslocasse o tempo W informado por várias centenas de milissegundos, como mostra o quadro abaixo:
Além disso, para os autores, a estreita correlação temporal entre W (vontade de mover) e P (mover) torna difícil a dissociação desses dois momentos. Até mesmo entre os poucos indivíduos que relataram um longo intervalo entre W e P, não foi observada qualquer diferença na resposta neurofisiológica em relação aos demais.
Quanto à localização espacial das atividades elétricas pré-motoras, houve fartos achados relacionados à Área Motora Suplementar como seu foco principal, como pode-se notar nos gráficos abaixo:
A máquina prevendo o ato humano!
Por fim, e representando o achado potencialmente mais interessante do estudo, a utilização de uma algoritmo preditivo originalmente utilizado em estudos de tecnologia da informação (“Sector Vector Machine”) conseguiu predizer o momento W (consciência em relação à vontade de realizar o movimento) com uma acurácia intrigante.
No lobo frontal medial, por exemplo, cerca de 1000 ms antes do tempo W informado, alcançou-se uma certeza de 70% (setenta por cento) em relação a este. Não só houve o registro de atividade elétrica antes da consciência da vontade, como houve, também, predição dessa vontade.
O gráfico abaixo mostra bem isso:
Se essa capacidade de previsão do futuro parece impressionante, mais surpreendente ainda foi o achado, em estudo posterior, de atividade cerebral relacionada a um ato motor inúmeros segundos antes do surgimento da vontade consciente de realizá-lo. Nesse caso específico, um algoritmo preditivo conseguiu prever o momento exato do movimento também vários segundos antes dessa consciência! Isso foi obtido por meio de registros de ressonância magnética funcional9.
Considerações finais
O experimento de Benjamin Libet não só representa um marco na neurofisiologia e na filosofia, mas também continua sumamente relevante e pleno de potencial em relação a seus desdobramentos e a seus consectários no que concerne ao livre-arbítrio e à ação mesma. Dados científicos analisados com rigor epistemológico adequado enriquecem o estudo filosófico e são, inclusive, fundamentais para que se possa delimitar o objeto adequado da reflexão filosófica pertinente aos temas que ambos tangenciam.
Tal discussão, assim, representa exemplo perfeito de uma necessária interação entre a Filosofia e áreas diversas do conhecimento humano, algo que não se pode evitar hodiernamente e que enriquece a reflexão a respeito de certos problemas filosóficos cruciais, devendo ser concretizada, no entanto, com o devido cuidado conceitual e respeitando-se a coerência das informações e das reflexões de cada campo do conhecimento. Superados os obstáculos de entendimento e de expressão de parte a parte com uma adequada interação, o domínio e a combinação desses diversos saberes passa a ter uma potencialidade enorme de incrementar a discussão filosófica.
A questão do livre-arbítrio ainda está em aberto. E não se esgota em reducionismos simplistas. Quem diria que uma máquina conseguiria saber, antes de nós mesmos, quando iríamos agir?
A Filosofia já trabalha com esse tema há vários séculos. Com cuidado e sem radicalismos, a Neurociência pode ser uma excelente ferramenta de apoio no incremento dessa reflexão.
*O artigo acima foi apresentado, com algumas modificações, no XV Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), em 2012.
Referências
- Hume, D., Investigação Acerca do Entendimento Humano, Tradução de Anoar Aiex, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996.
- Russell, B., “On the Notion of Cause”. Em: Slater, J., Frohmann, B. (orgs.), Logical and Philosophical Papers, 1909-13 (The Collected Papers of Bertrand Russell), Routledge, Oxford, 1992. Minha tradução.
- Libet, B. et al, “Time of Conscious Intention to Act in Relation to Onset of Cerebral Activity (Readiness- Potential) The Unconscious Initiation of a Freely Voluntary Act”, in Brain (1983), 106, 623-642.
- Libet, B., “How does conscious experience arise? The neural time factor”. Brain Research Bulletin, Vol. 50, Nos. 5/6, 1999, pp. 339 –340.
- Trevena, JA, Miller, J., “Cortical Movement preparation before and after a conscious decision to move. Consciousness and Cognition, 11(2), pp. 162-190 (2002).
- Trevena, JA, Miller, J., “Brain preparation before a voluntary action: Evidence against unconscious movement initiation”. Consciousness and Cognition, Volume 19, Issue 1, March 2010, pp. 447-456.
- Dennet, D. Freedom Evolves, Penguin (2004).
- Fried, I., Mukamel, R., Kreiman, G., “Internally Generated Preactivation of Single Neurons in Human Medial Frontal Cortex Predicts Volitio”. Neuron 69, 548–562, February 10, 2011.
- Bode,S. et al. Tracking the unconscious generation of free decisions using ultra-high field fMRI, PLoS ONE, San Francisco, v.6, n.6, p. e21612, 2001.