O discurso de posse do chanceler Ernesto Araújo parece dar um contorno de como será a nova Política Externa do governo de Jair Bolsonaro. O inusitado do conteúdo dessas manifestações é suficiente para que mereçam uma análise mais cuidadosa.

Tornou-se público que o nome de Araújo foi uma indicação do pensador Olavo de Carvalho, este alinhado ao que os norte-americanos costumam chamar de Alt-Right, uma conformação peculiar e radical do espectro ideológico da direita. O próprio Carvalho mora hoje nos Estados Unidos e já se encontrou pessoalmente com o novo ministro.

A grande quantidade de citações deu um ar algo pernóstico à fala do novo chanceler, mas o que se depreende do conjunto pode ser resumido em pontos relativamente simples.

O presente texto tenta extrair as ideias gerais do discurso e tecer breves comentários acerca destas. Alguns pontos merecem destaque.

Globalismo

O termo “globalismo” abunda na fala de Araújo, que o cita oito vezes. Tal categoria é cara ao pensador Olavo de Carvalho e a uma parte da direita, aqui e no Estados Unidos. Trata-se de uma marcante prevenção diante das instâncias multilaterais de decisão no âmbito internacional, como a Organização da Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), os inúmeros acordos regionais de livre comércio etc.

O globalismo seria uma hipervalorização dessas instâncias em detrimento da soberania de cada país, tomado individualmente. Representaria, portanto, o fim das nações. Seu antídoto é o fortalecimento da nação, da pátria.

Por trás do movimento globalista, estariam alguns poucos grupos que controlam boa parte do capital mundial e manipulam insidiosamente a opinião pública para a agenda multilateral. Os Rothschild (sempre eles…) e o magnata das finanças George Soros estariam entre eles.

Como pano de fundo do globalismo, haveria a propagação, tanto aberta quanto subliminar, de uma pauta tida como esquerdista e descrita como “marxismo cultural” (o que quer que seja isso), urdida para atingir os objetivos dessa elite, que busca enriquecimento e controle político global.

Os movimentos identitários (feminismo, direitos LGBT etc) estariam nesse âmbito, por mais que tais grupos tenham sido invariavelmente reprimidos em regimes ditos marxistas.

Desde que esse discurso surgiu, há mais de uma década, tem sido considerado como uma típica teoria da conspiração, característica de grupos políticos sectários.

A comparação com a demonização da “globalização”, levada a cabo por uma parcela mais radical da esquerda, é inevitável.

Para esse grupo, a globalização e os organismos que a consolidam (ONU, OMC, acordos de livre comércio etc) estariam a serviço de… uma elite financeira internacionalizada que controla boa parte do capital mundial e que manipula insidiosamente a opinião pública em prol da exploração de uma grande parcela da população mundial, em verdadeiro regime de semi-escravidão.

Como pano de fundo da globalização, haveria a propagação, tanto aberta quanto subliminar, de uma pauta tida como direitista e descrita como “neoliberal” (o que quer que seja isso), urdida para atingir os objetivos dessa elite. Não tenham dúvida, os Rothschild (sempre eles…) também são lembrados pelos críticos da globalização. Esses magnatas, por sinal, são citados como vilões desde o século XIX por inúmeros grupos radicais políticos, de esquerda e de direita.

Algumas figuras ligadas ao governo Bolsonaro tentam diferenciar globalismo de globalização, considerando-os mesmo contrários. De fato, se a crítica ao primeiro é ligada a uma direita mais radical e se a crítica à segunda é ligada a uma esquerda mais radical, é possível achar nessa característica uma diferença marcante.

Suas semelhanças, porém, são muito mais evidentes. Na verdade, essas duas teorias conspiratórias têm uma raiz única: um forte antiliberalismo. Não à toa, a relativização ou mesmo a negação de princípios liberais clássicos como a liberdade de expressão, a livre imprensa, entre outros, são um denominador comum desses grupos. Não é por acaso, portanto, que as franjas mais sectárias da direita brasileira critiquem ferozmente os mesmíssimos grupos de imprensa criticados, com a mesma veemência, pelas franjas mais sectárias da esquerda brasileira há muito pouco tempo.

Ao reverberar a retórica contra o globalismo, Ernesto Araújo inova no Itamaraty, injetando uma forte carga ideológica (sim, há ideologias de vários espectros políticos) a uma instituição que conseguiu manter historicamente um grau considerável de autonomia e de sobriedade, mesmo durante a ditadura militar e, ao contrário do que o novo chanceler pensa, até durante o governo de Lula et caterva.

Não se pode negar um viés ideológico na política externa durante o governo Lula, notadamente no que concerne à América Latina. A tragédia venezuelana, por exemplo, tem raízes – minimizadas por Lula – que remontam a essa época. Foi lamentável, ainda, o “abandono” do Itamaraty no governo de Dilma Rousseff. Pode-se dizer, contudo, que contaminações políticas episódicas não foram, até hoje, suficientes para mudar a boa imagem diplomática que o Brasil tem na comunidade internacional. A ver.

Religião

Outra faceta que tem força no discurso do chanceler é a religião cristã. O movimento é claramente o de se voltar à contemplação de um passado mais glorioso, ligado à religiosidade. Essa nostalgia pede o resgate de valores aparentemente perdidos.

Daí a “Aleteia” grega referida por ele, o “desesquecer”, no sentido heideggeriano de desvelamento da verdade (Araújo não lembrou do velho Heidegger). Como breve nota em relação ao suposto passado de glórias, é sintomática a saudação a Dom Bertrand, tratado como “Sua Alteza Real” no início da fala.

Voltando à religião, a citação do Evangelho de João é curiosa. Esse evangelho, excetuando-se alguns dos apócrifos, foi aquele escrito mais tardiamente. O primeiro a ser escrito foi o de Marcos, o mais carregado de historicidade, segundo estudiosos como Geza Vermes. Já o de João, apesar de seus alicerces históricos limitados, é aquele que tem a Cristologia mais avançada. Nele, já se vislumbra o Cristo como Mestre de uma nova religião, não mais um líder de mera seita judaica. Essa abordagem ganharia mais força ainda com Paulo.

A famosa expressão “A Verdade vos libertará”, de João, foi instrumentalizada por Araújo, ao se colocarem, ele e o novo governo, como conhecedores da Verdade que vai libertar o país. Sua menção ao “Logos”, também de João, como Palavra, linguagem que exprime a Verdade, não foi tão bem desenvolvida e pareceu algo forçada.

O ministro citou São Paulo (ou Paulo de Tarso, como preferem os protestantes), mesmo que não tenha notado. A menção a Paulo foi por meio de uma música de Renato Russo, na qual se encontra um trecho adaptado das Epístolas aos de Corinto, relacionando Amor e Verdade. Registre-se que, ao contrário do que foi dito no discurso, o vocalista da banda Legião Urbana não era brasiliense, mas carioca.

Paulo não conheceu Jesus pessoalmente, mas escrevia (e falava) como se soubesse exatamente o que o Mestre julgaria como correto e adequado. Construiu uma imagem nova de Jesus, conseguindo descrever um complexo judeu fortemente carregado da apocalíptica judaica do primeiro século de uma maneira diferente e cheia de apelo, conquistando os gentios (não judeus). Sua sagaz pregação adaptada às circunstâncias acabou ganhando o mundo.

Araújo não fala em nome da complexa Igreja Cristã (Católica ou Protestante), mas tenta se utilizar de seus elementos para construir um arcabouço que fortaleça suas teses nacionalistas e algo messiânicas, de salvamento da pátria tendo Deus como chave. As citações bíblicas são “pinçadas” e servem como “escada” para compor os raciocínios do ministro, mas estes não respeitam exatamente o intrincado e nada simplório conhecimento teológico que existe acerca do texto sagrado.

A menção a Israel é sintomática, mas é bom sublinhar que a pauta de transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, a par de parecer uma emulação provinciana e ingênua da política externa trumpiana, pertence somente a uma pequena parcela mais fundamentalista de evangélicos. Estes acreditam que o Messias só retornará após a volta do povo de Judá para sua terra e depois da reconstrução do Templo de Salomão (o terceiro). Algo assim só poderia acontecer se Israel controlasse definitivamente Jerusalém. Inúmeras denominações protestantes e, principalmente, a quase totalidade dos católicos não têm uma visão tão restrita assim da questão e prefeririam não trazer a antipatia da comunidade islâmica para o Brasil.

O brasileiro é preponderantemente cristão e Araújo procurou valorizar essa religião de modo específico. Esse mesmo povo brasileiro também tem, contudo, um forte sincretismo religioso, havendo uma histórica tolerância informal à interação entre diversas denominações de fé no país. É a nação na qual árabes muçulmanos e judeus interagem, sem conflitos, na região central de uma das maiores metrópoles do mundo. Comprar uma camisa bem cortada no Bom Retiro, um belo tapete na 25 de março e lanchar um ótimo quibe próximo ao Mercadão são demonstrações desse convívio. Seria natural o ministro dar ênfase especial ao cristianismo, mas seu discurso acabou sendo de verdadeira exclusividade em relação à fé cristã.

Felizmente, a maioria dos cristãos brasileiros é moderada e só espera que o convívio tranquilo continue sendo a regra no país. O risco que pode transparecer da fala de Araújo é o de o novo governo valorizar excessivamente a minoria cristã mais fundamentalista. Ainda é cedo para julgar isso, contudo.

Verdade

O termo “verdade” foi citado nada menos do que 31 (trinta e uma) vezes no transcorrer da fala de Ernesto Araújo. Merece, portanto, atenção especial. Começou com a já comentada citação do Evangelho de João (“a verdade vos libertará”) e se espalhou discurso afora.

O que parece se insinuar da utilização desse termo é a ideia de que a Verdade, capaz de libertar a nação e o mundo, é enxergada somente por um grupo restrito de pessoas que conseguiu atingir tal grau de conhecimento, de percepção da realidade. Seria desse grupo a missão de corrigir os males da sociedade, do país, da política externa, do mundo.

Essa ideia não é nova e foi muito bem desenvolvida pelo pensador conservador Eric Voegelin, ao relacionar a Ciência Política com o Gnosticismo. Para ele, este último defenderia, em sua acepção clássica, a possibilidade da correta compreensão da realidade e da desordem do mundo por parte de um grupo específico, que conseguiria alcançar a Verdade. Tal verdade seria vislumbrada por meio da “Gnosis” (conhecimento) e não estaria sujeita a críticas, pois seus pretensos críticos sequer conseguiriam entender as categorias utilizadas para a correta compreensão do mundo. A Verdade estaria, assim, inacessível à dissidência.

A percepção de uma Verdade que é, ao mesmo tempo, redentora, mas, também, acessível somente a alguns, é o cerne dessa abordagem. Ora, aqueles que conseguiram alcançar a Verdade teriam, por certo, a missão de mostrar (ou de impor) isso aos outros.

Para Voegelin, esse resquício de concepção gnóstica da realidade, fortemente centrado em uma pretensa Verdade que liberta, é típico dos extremismos políticos, tanto de direita quanto de esquerda. Os grandes totalitarismos do século XX seriam testemunhos do risco de se alimentar tal tipo de fé política.

A verdade exposta na fala de Araújo lembra muito essa “Verdade”, com “V” maiúsculo, exposta e criticada por Voegelin. E não custa lembrar que o pensador alemão é considerado um grande nome do pensamento conservador no século XX.

Nacionalismo

O último ponto a ser destacado do discurso de Araújo é o forte nacionalismo. Contra o globalismo, o fortalecimento da nação seria o remédio. A citação da Ave Maria do grande José de Anchieta, em Tupi-Guarani, teve esse simbolismo.

Uma nota: o termo “anauê” (ave, salve) no início da oração tem uma conotação histórica negativa no Brasil, por ter sido o grito de saudação dos seguidores do Integralismo, movimento de forte viés fascista dos anos 1930. Mas Padre Anchieta não tinha nada a ver com isso e sua tradução é, sim, muito bonita. Nem todos notaram, mas o ministro fechou seu discurso com esse termo (“Anauê Jaci”).

A oração é ainda mais simpática por utilizar os termos Jaci e Tupã no lugar de Maria e de Jesus. Isso fortaleceu a aura de nacionalismo que o novo chanceler tanto quis sublinhar.

A menção ao Sebastianismo remete a um componente ancestral do nacionalismo, tanto luso quanto brasileiro. É, também, salpicado de messianismo, da eterna espera pelo líder que voltará da guerra para salvar a pátria. Para Araújo, o líder chegou e a salvará, sim.

Ao elencar inúmeros grandes escritores brasileiros (Clarice Lispector era ucraniana de alma brasileira), o objetivo foi tanto valorizar a arte que nasce do solo pátrio quanto menosprezar os meios de imprensa que o ministro entende serem ligados à pauta globalista, como o jornal The New York Times e a rede CNN.

Considerações gerais

O excesso de citações, apesar de impressionar o leigo, talvez tenha atrapalhado a fluidez do discurso, tornando-o algo hermético e enfadonho. Para quem não é leigo, ficou a impressão de um uso exagerado de aforismos, montados como verdadeira colcha de retalhos, às vezes de modo um pouco forçado.

A utilização dessas inúmeras aspas, contudo, fica restrita ao âmbito de seu significado superficial e parece servir mais de adorno ao conjunto retórico do que como prova de profundo domínio de tais conceitos. Alguns poucos deslizes, também, poderiam ser evitados (Renato Russo não era brasiliense e também não era Paulo de Tarso).

O importante, na verdade, é tentar vislumbrar no conteúdo do discurso uma pista de como será a política externa do governo Bolsonaro.

A troika (1) nacionalismo, (2) religião cristã (com toques fundamentalistas, a ver) e (3) antiglobalismo (neste ponto, pérvio a teorias conspiratórias) sobressai das palavras do chanceler. Ainda é muito cedo para saber se isso redundará (1) em protecionismo exagerado e ufanismo, (2) em intolerância às outras denominações religiosas, com desgaste do rico sincretismo religioso brasileiro e (3) em corrosão das instâncias internacionais das quais o Brasil não só faz parte como, também, orgulhosamente ajudou a construir, como a ONU e a OMC. Todos esses pontos estão em aberto.

Perpassando os três aspectos elencados, há a ideia de que o grupo que foi capaz de “enxergar a Verdade” deve corrigir a desordem que se instalou. Isso acrescenta uma carga de messianismo ao presidente e a seu entorno que, a princípio, não é exatamente compatível com a prudência e a boa racionalidade políticas. É inegável, porém, que isso tem um forte apelo junto ao seu núcleo duro de eleitores.

Oscilações da política externa ligadas às preferências de determinados governos sempre existiram, mas nunca foram suficientes para mudar a imagem de moderação e de diálogo que o Brasil construiu perante o mundo durante muitas décadas. A ver se o novo ministro vai representar mais uma oscilação ou uma verdadeira ruptura radical na tradição diplomática brasileira.

Leia a íntegra do discurso de posse do novo chanceler neste link.

P.S.: O ministro utilizou somente uma vez o termo “socialismo”, fazendo referência ao passado. Sabe-se que o presidente e seu grupo mais chegado utilizam esse termo com a mesma falta de rigor que uma parcela mais radicalizada da esquerda utiliza o termo “fascista”. Como o chanceler não incorreu nesse equívoco em seu discurso, não é necessário tecer um comentário específico neste texto.