Desde a Revolução Francesa, a divisão e as características concernentes aos nichos do espectro político-ideológico que ocupam a esquerda e a direita tornaram-se temas inescapáveis do debate político. O século XX, com a ascensão dos grandes totalitarismos e as indescritíveis catástrofes humanas causadas pelos extremos de ambas as frentes, levou ao nível mais dramático essa dicotomia. As grandes ditaduras nazi-fascistas foram derrotadas em meados do século passado e as grandes ditaduras comunistas esfacelaram-se em fins do mesmo século, apesar dos estertores destas últimas ainda poderem ser debilmente ouvidos em situações anacrônicas, como as encontradas em Cuba, na Coreia do Norte e no Laos. Sem pretender esgotar um assunto tão complexo, este texto se propõe a refletir sobre as características específicas da esquerda nos dias atuais e sobre seu papel, objeto de notáveis mudanças no mundo, de maneira geral, e no Brasil, em particular.

Século XX: eventos históricos definidores

Como marco temporal, o período compreendido entre os anos de 1914 e de 1991 guarda os principais acontecimentos que ajudaram a moldar as singularidades da esquerda de hoje. É o período nomeado por Eric Hobsbawm, não por acaso, como “Era dos Extremos”1. A Primeira Guerra Mundial – com a consequente Revolução Russa –, a Segunda Guerra Mundial e a queda do império soviético são os pontos de inflexão mais importantes para o entendimento da questão aqui tratada. No Brasil, afora tais marcos de influência mundial, a ditadura militar imposta ao país nos anos da Guerra Fria foi determinante para que a esquerda brasileira tomasse a forma que a caracteriza atualmente no país.

Revolução bolchevique de 1917 e sua influência

Primeiramente, a revolução bolchevique de 1917 trouxe imenso apelo e ajudou a estruturar, ideológica e materialmente, inúmeros grupos de esquerda mundo afora. Foi a época em que se fortaleceram partidos comunistas em vários países, com grande influência, senão ingerência, de Moscou. No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro, o “Partidão”, foi gerado nessa configuração geopolítica. O marxismo ganhou força enquanto corrente filosófica fortemente ligada a esse movimento e seu estudo, o mais das vezes superficial e mal padronizado, tornou-se quase obrigatório a quem se definia como “de esquerda”.

Foi a segunda vez na história humana em que uma corrente filosófica específica teve força suficiente para se tornar o arcabouço teórico relativamente homogêneo de um considerável aparato de poder. Antes dele, somente a Escolástica teve tal status, ao representar bem o arcabouço teórico que pretendeu justificar o enorme aparato de poder da Igreja Católica (a análise sobre os motivos que levaram ambas as experiências histórico-filosóficas, com alguns curiosos pontos convergentes entre si, a findarem redundando em verdadeiras catástrofes humanas foge ao escopo do presente trabalho, apesar de ser discussão assaz interessante).

Pode-se definir, assim, a primeira configuração da esquerda no século XX como consectária da influência política advinda dos resultados práticos da formação da União Soviética e de sua irradiação político-ideológica, conseguindo sobrepujar movimentos como o anarquista e os resquícios do “socialismo utópico”, termo originalmente pejorativo que Engels forjou para os socialistas que vieram antes de Karl Marx e dele próprio. Mesmo os trotskistas, perseguidos por Stalin e que se definiam como uma corrente diversa, eram filhos da mesma revolução bolchevique.

China e outras configurações da extrema esquerda

Após o grande marco representado pela Segunda Guerra Mundial, a par de suas hiperbólicas características específicas enquanto tragédia humana, alguns outros acontecimentos que se seguiram na esteira do maior conflito bélico de todos os tempos tiveram grande relevância na configuração da esquerda. O primeiro foi a revolução maoísta comunista chinesa de 1949, que cindiu o país em basicamente duas regiões distintas: a China continental comunista de Mao Tsé-Tung e a China insular (Formosa ou Taiwan) de Chiang Kai-shek. Esse episódio abriu mais um flanco ideológico na esquerda, já que o governo de Pequim acabou se distanciando da influência de Moscou e se fechando politicamente, minando, de certo modo, o caráter internacionalista do movimento comunista, até então sob tutela praticamente hegemônica da União Soviética.

Essa divisão foi aprofundada após a morte do ditador Josef Stalin, quando Nikita Khruschev expôs e criticou as atrocidades cometidas por seu antecessor, durante o XX Congresso do Partido Comunista de 1956. Pelo mundo afora, houve uma debandada de membros de inúmeras agremiações comunistas, não suficiente para ferir de morte o movimento, mas o bastante para abalar suas convicções de modo permanente (na mesma época, Raymond Aron publicava seu cáustico “O Ópio dos Intelectuais”2). No Brasil, o exemplo mais famoso foi o do escritor Jorge Amado, comunista que abandonou os laços com o partido, desiludido após o “discurso secreto” de Khruschev. Uma síntese disso é feita por Contardo Calligaris, ex-trotskista e importante formador de opinião da esquerda atual, para quem a década de 1950 já era “uma época em que só os otários e os desonestos ignoravam os horrores da experiência soviética”3.

Houve uma cisão na esquerda, que passou a admitir, além dos “russos” trotskismo e stalinismo (Stalin, na verdade, não era russo – era natural da Geórgia –, mas assumiu de maneira plena a mentalidade do imperialismo russo da era czarista), expressões ideológicas mais diversas, como o maoísmo chinês. Alguns militantes mais extremados chegaram a assumir como parâmetro experiências excêntricas e esdrúxulas, como a da ultrarreacionária ditadura da Albânia, cujo líder tinha manias tão sinistras que viraram motivo de piadas até entre membros da alta burocracia soviética.

Marxismo Ocidental e Social-democracia

No campo teórico, após as limitações do “marxismo científico” terem ficado bem claras, tomou corpo o que Merleau-Ponty chamou de “marxismo ocidental”4, composto por uma pletora de pensadores, alguns de excelente nível, desde Lukács até a Escola de Frankfurt, passando por Gramsci.

No Brasil, houve uma cisão do PCB, com a criação do PCdoB, a partir de um grupo de stalinistas inconformados com a “desestalinização” do Partido Comunista Brasileiro. O PCdoB tomou posteriormente outros caminhos referenciais, mais estranhos ainda.

Após 1950 e principalmente na Europa, de modo paralelo à fragmentação das correntes de cunho marxista, fortaleceu-se uma parte do movimento da esquerda de conformação menos radical, que ganhou espaço como a moderna social-democracia. Suas origens também remontam ao marxismo do século XIX, sendo caudatária direta do pensamento de Eduard Bernstein, discípulo e amigo pessoal de Marx e legatário (beneficiário em testamento) de Engels. Bernstein ajudou a moldar a configuração do movimento social-democrata no século XX com sua ideia de evolucionismo socialista5. Tratava-se de uma crítica ao materialismo histórico ortodoxo, que se baseava em uma disputada e nada unânime lógica hegeliana e na assunção da Teoria do Valor Trabalho de Ricardo, à época já considerada ingênua pelos economistas. A fragilidade desses sustentáculos seria, assim, insuficiente para justificar intervenções políticas, o mais das vezes brutais, em nome de uma pretensa verdade.

Bernstein, apesar de nunca ter deixado de se definir como marxista, foi um dos primeiros que notou a inconsistência de algumas previsões de Marx em relação à economia de mercado, como sua ideia de uma tendência inescapável à incontrolável concentração do capital, que levaria o sistema ao ponto do colapso (esse verdadeiro malthusianismo econômico de Marx foi exposto, enquanto análise ingênua, em livros bem atuais que tratam da séria questão da desigualdade, como a já referencial obra de Piketty6). Outras incoerências do arcabouço marxista, como o famoso “Problema da Transformação”, foram citados à época, mas sua discussão foge ao âmbito deste texto.

Para Bernstein, então, a evolução em termos de ganhos sociais poderia se dar dentro da própria economia de mercado, em ambiente democrático. Algumas mudanças na sociedade europeia já mostrariam isso, principalmente na Inglaterra, utilizada anteriormente pelo próprio Marx como modelo dos problemas do capitalismo. O Estado de bem-estar social da segunda metade do século XX, na Europa, foi fruto dessa resposta mais benigna da esquerda tanto frente ao liberalismo econômico mais radical quanto às ditaduras comunistas que assolavam a Europa oriental e a União Soviética. Tal configuração da esquerda, contudo, não se repetiu em todas as partes do mundo.

A esquerda na América Latina: Cuba e a ingerência dos EUA

Particularmente na América Latina, um acontecimento foi crucial para a conformação da esquerda na região: a revolução cubana de 1959. Inicialmente de caráter liberal e democrático, mas de forte teor anti-imperialista, a marcante brutalidade inicial dos revolucionários, a nacionalização de algumas indústrias estadunidenses em território cubano e, acima de tudo, a desastrada maneira como a revolução foi tratada pela cúpula governamental dos Estados Unidos da época, causaram uma inexorável aproximação entre o novo governo cubano e a União Soviética, com sua consequente degeneração para uma ditadura de extrema esquerda, caracterizada pela repressão e pelo reacionarismo típicos dos extremos ideológicos.

Entrevistado pela rede CBS em Havana, logo após a revolução, Fidel Castro foi perguntado acerca da defesa dos direitos civis e da superação da ditadura de Batista. Sua resposta, ao garantir que manteria os direitos civis, foi eloquente: “não sou comunista, de jeito nenhum!”. Ele chegou a visitar os EUA por duas vezes em 1959, sendo muito mal recebido em ambas, apesar de, na primeira delas, no mês de abril daquele ano, ter sido bastante cuidadoso com seu discurso, para não ferir suscetibilidades, em uma clara tentativa de aproximação7. A prepotência e a falta de visão do governo norte-americano impediram qualquer entendimento.

Após conseguir escapar heroicamente de um injusto imperialismo estadunidense, Cuba tornou-se refém do imperialismo soviético. O governo de Moscou passou a tratar a ilha caribenha como uma província avançada nas Américas, controlando-a de modo estreito e definindo unilateralmente inúmeras políticas cubanas, como a estruturação do parlamento (de partido único) e dos “conselhos”, o cerceamento à industrialização, a proibição da tradicionalíssima pesca artesanal (para evitar fugas de barco), o recuo da produção agrícola – que chegou à metade do que era antes da revolução – e, no seu limite, a solicitação de cubanas que “serviriam” aos técnicos da cúpula soviética que passaram a frequentar a ilha fugindo do inverno europeu.

A União Soviética injetou mais dinheiro na ilha caribenha entre 1961 e 1991 do que todo o montante do Plano Marshall de reerguimento da Europa Ocidental no pós-guerra. A dependência se tornou total. Crianças cubanas tinham que decorar trechos de Pushkin no original, enquanto o escritor cubano Reinaldo Arenas, que participou da revolução, era encarcerado em um campo de trabalhos forçados e teve os livros proibidos por ser um “homossexual subversivo”. Como deixou escapar Fidel Castro em uma ocasião, referindo-se a esse longo período de ingerência de uma grande potência exterior: “os próprios russos estudando inglês e nós estudando russo”8.

As “ditaduras profiláticas” de direita e a resistência radical

Essa triste escaramuça caribenha teve profundas consequências em toda a América Latina. Como estratégia para evitar o risco comunista em outros países do continente, houve um lamentável período de ditaduras, várias delas politicamente “profiláticas”, com patrocínio estadunidense mais ou menos explícito, dependendo do caso.

O Brasil não escapou incólume desse período de ingerências do imperialismo americano e o que parecia ser mais um movimento militar de tomada do poder e posterior retorno do mesmo aos civis, em 1964, tomou a forma, notadamente a partir de 1967, de uma ditadura de triste memória e com forte inspiração reacionária, como é característico das ditaduras em geral. Ainda no transcorrer de uma tentativa de reconstrução democrática, após o período autoritário da ditadura de Getúlio Vargas, o país caía novamente nas garras do autoritarismo.

Deste modo, na América Latina – Brasil inclusive – e diante do engessamento causado pela opressão das ditaduras, a inflexão moderada da esquerda social-democrata, tão característica da Europa na mesma época, não entrou sequer em pauta. Os legítimos movimentos de resistência aos governos de exceção e o forte sentimento de antiamericanismo causado pela ingerência estadunidense na região estimularam uma postura mais radical e voltada a um marxismo revolucionário mais clássico, mesmo que este, em outras paragens, estivesse se tornando cada vez mais anacrônico.

Uma nova esquerda?

Uma nova tendência da esquerda, diversa das citadas acima e que começou a tomar forma no terceiro quartel do século XX, tem enorme importância na atual configuração do que pode ser chamado de movimento progressista. Trata-se do que Inglehart chama, já em 1977, de tendência pós-materialista de orientação política9. O termo “pós-materialista”, na acepção particular desse cientista político, merece explicação mais pormenorizada. Para ele, estaria em curso uma inflexão, de uma posição que priorizava a ordem estatal e o crescimento econômico para uma nova tendência, que valorizaria de modo especial outros objetivos, como proteção ao meio ambiente, liberdade de expressão, qualidade de vida, igualdade de gênero, direitos da comunidade LGBT, direitos da comunidade negra, entre outros. Isso se daria particularmente em um ambiente onde as necessidades básicas da população já estivessem sendo atendidas de modo estável, como nos países desenvolvidos do ocidente durante a época estudada por Inglehart. Daí sua referência ao termo “materialista”, que não se confunde com seu sentido filosófico, fazendo, antes, referência às necessidades materiais básicas.

A prosperidade do pós-guerra no Ocidente e seus filhos

Os nascidos após a Segunda Guerra, em países que garantiram essas necessidades materiais básicas da população, experimentaram níveis de prosperidade e de bem-estar inéditos na história humana, produzindo uma mudança na prioridade de valores e dando oportunidade ao surgimento de novos movimentos políticos e sociais10. Mas isso dependia, também, do grau de repressão e de reacionarismo dos governos, independentemente do viés ideológico. Estudos sociológicos, de fato, mostram que democracias tendem a ter uma população mais pós-materialista (no sentido de Inglehart), ao contrário de países de governos autoritários. Outrossim, nos locais em que a pobreza ainda é um problema marcante, há uma predominância de pessoas de perfil materialista (também no sentido de Inglehart), que têm como prioridade assegurar sua sobrevivência e atingir uma desejada estabilidade política, mesmo que abrindo mão de valores outros, como a liberdade11, o que as torna mais permissivas a ditaduras, de direita ou de esquerda que sejam. As mesmas pesquisas indicam que pós-materialistas são muito mais tolerantes em relação a homossexuais e permissivos em questões como aborto, prostituição e eutanásia do que os de tendência materialista12.

Inglehart insere o pós-materialismo em um processo mais abrangente de mudança cultural que tem reformulado a configuração política do mundo. Ele o denomina simplesmente de “orientação pós-moderna” da sociedade13. Reitere-se que, além da pobreza, um histórico de governos autoritários, como indicado acima, também atrasaria ou impediria essa mudança em vários países.

No início do século XXI, por exemplo, a tendência materialista em relação às prioridades políticas e reacionária em relação aos costumes superou a tendência pós-materialista e liberal em lugares como o Paquistão (50 para 01), de marcante pobreza, e a Rússia (30 para 01), esta com um longo histórico de autoritarismo. Onde há miséria e/ou autoritarismo, nunca floresceu uma nova esquerda democrática viável.

Qual materialismo?

Registre-se que o termo “materialista”, da maneira como tratado por Inglehart, não se confunde com sua acepção estritamente filosófica, que assume variadas abordagens possíveis (científica, histórica, dialética etc), mais atreladas a seu embate milenar com correntes filosóficas ligadas ao idealismo.

No caso dele, a inspiração vem – em parte – de Maslow, famoso psicólogo que definiu as necessidades humanas materialistas como dizendo respeito a motivações de ordem inferior (ligadas às seguranças econômica e física de nível básico), em contraste com as motivações de ordem superior (ligadas às necessidades de nível menos básico, como autoestima, qualidade de vida, autorrealização etc). Para Maslow, o indivíduo só terá motivações de ordem superior de modo marcante, explicitando-as de maneira sólida, depois de resolvidas suas necessidades materialistas de ordem inferior14.

Inglehart, a seu modo, transpôs essa análise para o âmbito social mais amplo. Este, porém, não entrou especificamente no mérito da análise ideológica da dicotomia esquerda-direita, apesar de ter indicado explicitamente, em trabalho publicado em 197115, que a pauta dos manifestantes do emblemático maio de 1968 em Paris era singular em comparação às reivindicações usuais dos movimentos da esquerda até aquele momento, representando uma mudança em curso nas chamadas sociedades pós-industriais (ainda não usava o termo pós-materialista).

Nova Esquerda Pós-materialista

Foi Savage, em 1985, que levou a tendência pós-materialista, como descrita por Inglehart, ao âmbito da cisão ideológica16. Segundo ele, não há um grupo social e político unificado que possa ser chamado de pós-materialista. Antes, poder-se-ia falar de uma nova direita pós-materialista e de uma nova esquerda pós-materialista, que diferiam entre si em relação a como a sociedade deveria ser dirigida, apesar de terem, ambas, uma característica mais liberal em relação aos costumes e à valorização dos temas já elencados por Inglehart, como questões ambientais, liberdade de expressão, direitos da comunidade LGBT, direitos da comunidade negra, qualidade de vida, igualdade de gênero, entre outros.

No presente texto, como já ressaltado, está-se abordando a vertente da esquerda. A nova direita advinda dessa realidade, bastante liberal e nada conservadora em relação aos costumes, mas de postura mais particular em relação à economia, será abordada em outra ocasião.

“Baby boomers” e suas novas demandas: uma nova crítica radical

Como visto, Inglehart já havia notado algo singular nas motivações das manifestações de 1968 em Paris. Já nos Estados Unidos, insere-se nesse âmbito a verdadeira revolução de costumes e de pauta que a geração dos “baby boomers” (nascidos na prosperidade do pós-guerra) provocou, concretizada, entre outros, no icônico movimento hippie de fins dos anos 1960 e início dos anos 1970. A luta era pela liberdade, pelo amor livre, pela queda de preconceitos de raça e de gênero e, acima de tudo, havia uma clara repulsa a todo tipo de autoritarismo, de onde quer que viesse. A sociedade de consumo e os excessos capitalistas eram denunciados, mas também o eram os excessos e a irracionalidade da extrema esquerda, que teria trocado um inferno por outro, pior ainda. Foram atacados tanto pela direita conservadora quanto pela esquerda ortodoxa, que os considerava “alienados”, mas acabaram definindo a maior parte da agenda da nova esquerda contemporânea.

Apesar de considerados radicais e de encamparem uma verdadeira luta contra “tudo o que está aí”, suas diferenças em relação às esquerdas de linha mais ortodoxa eram notáveis, o que mostrava o quão ultrapassadas estas últimas estavam, já à época. Enquanto homossexuais eram considerados uma “degeneração burguesa” e mandados para campos de trabalhos forçados em Cuba e na União Soviética, nas efervescentes comunidades hippies eles eram bem-vindos e tratados com dignidade, algo bastante excepcional para a época, mesmo em democracias.

O autoritarismo e a tendência reacionária em relação aos costumes, onipresentes nas ditaduras de extrema esquerda, mesmo que insistentemente negados por militantes com alto grau de alienação ideológica, eram decepcionantes para essa juventude que lutava por uma vida liberada das amarras tradicionais e tais governos não representavam, assim, uma opção. Um célebre episódio, que bem espelhou isso, foi quando o militante de extrema esquerda Abbie Hoffman, ao tentar fazer um discurso “engajado” no palco do Festival de Woodstock em que se apresentava o The Who, foi expulso à base de guitarradas por Pete Townshend, para delírio do público17.

Nova esquerda como superação de um modelo autoritário anacrônico

Mas tais episódios, na Europa e nos Estados Unidos, representaram somente um primeiro, apesar de bastante notável, sinal dessa nova tendência. Especificamente em relação à esquerda, objeto deste texto, o termo pós-materialista pode ser ainda mais significativo, pois indicaria, suplementarmente, uma tendência à superação da hegemonia do materialismo histórico marxista em seu âmbito. Como visto, o termo “materialismo” tem um sentido bem diverso em Filosofia, mas não deixa de ter peso simbólico a insinuação linguística de que aquela tradicional vertente filosófica da esquerda não era mais suficiente e, muito menos, infalível.

Isso exprimiria o óbvio: Marx deixou de ser encarado, na prática, como um profeta ou um sacerdote ideológico e passou a ser o que realmente era e é: um respeitável e importante pensador. Afinal, é muito pouco provável que o grande filósofo alemão tivesse apoiado qualquer uma das brutais e reacionárias ditaduras de extrema esquerda surgidas no século XX em seu nome, desde a União Soviética até Cuba, passando pela China, por Camboja e pelo Leste Europeu. O mais provável é que ele as utilizasse para ilustrar sua importante obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (talvez tivesse que mudar ou ampliar seu título).

O que se pode chamar de Nova Esquerda Pós-materialista hoje em dia, no entanto, não é uma cópia pronta daqueles movimentos da contracultura de fins dos anos 1960 e começo dos anos 1970, que podem ser considerados, no máximo, uma primeira manifestação dessa tendência, de maneira ainda disforme e desajeitada. Não foram tão homogêneos quanto um vislumbre descuidado pode supor e houve, também, momentos de radicalismo irracional, de exageros, de desgaste e de indefinição. Um dos momentos mais marcantes de 1968 foi o dos milhares de estudantes em Paris cantando o emblemático hino “A Internacional”, composição de 1871. Para quem conhece História, o momento remetia muito mais à ânsia libertadora da Revolução de fevereiro de 1917 que derrubou o czarismo na Rússia do que ao movimento de outubro do mesmo ano naquele país, que marcou o início de uma brutal ditadura.

Acerca da complexidade que cerca essas manifestações, Daniel Cohn-Bendit, líder dos protestos de 1968 em Paris, fez uma observação essencial: “Nós ganhamos do ponto de vista cultural e social, mas felizmente perdemos do ponto de vista político”18. Cohn-Bendit, nascido em 1945 (babyboomer europeu) e filho de um comunista perseguido pelo nazismo, posteriormente se tornou ambientalista e importante parlamentar pelo Partido Verde na Alemanha. É publicamente atuante até hoje (2017), tendo assinado documentos em apoio às candidaturas de Marina Silva e de Dilma Rousseff no Brasil.

A expressão “pós-materialista”, quando ligada à esquerda, desdobra mais significados. Ao intuir uma certa evolução do pensamento progressista, remete adicionalmente a um apelo maior por uma certa racionalidade econômica que garanta a otimização de recursos e alguma estabilidade social, mesmo tendo uma posição característica em relação ao papel do Estado que a difere bastante daquela da direita. Consegue, assim, conviver muito bem com modelos econômicos como o Keynesiano, o Pós-Keynesiano, o da Teoria dos Jogos, o da Economia Comportamental e o Neoclássico, todos incompatíveis com o marxismo ortodoxo, que os critica sem exceção. Afastou-se, também, de alguns antigos dogmas, hoje restritos a nichos considerados anacrônicos – mesmo no âmbito da esquerda –, como o ricardiano da Teoria do Valor-Trabalho, que não encontra sustentáculo em análises econômicas modernas e que sobrevive apenas em argumentos retóricos de uma militância específica.

A mudança, claro, não é estanque e não houve a simplória superação de uma esquerda por outra. Do mesmo modo que ainda existem (em 2017!) aqueles que defendem toda a pauta ultrapassada de uma direita ultraconservadora, bradando um discurso vitoriano (vide Trump, nos EUA, e a onda reacionária de direita que incomoda a Europa), ainda há (em 2017!), também, aqueles que defendem toda a pauta ultrapassada de uma esquerda que insiste em não admitir seu autoritarismo e seu reacionarismo, bradando um discurso oitocentista (vide Maduro, na Venezuela).

Velha esquerda e nova esquerda: o velho tenta, mas não entende do novo

A maneira como as tendências aqui descritas se desenvolveram não foi rígida e chegou a haver uma curiosa interação entre a esquerda arcaica e a nova. Enquanto a pauta da contracultura pululava nos EUA e na Europa Ocidental, países como o Brasil, dominados ainda por uma esquerda mais ortodoxa, tentaram absorver um pouco desse caldo efervescente. O ruído foi claro. Até hoje, em plena segunda década do século XXI, é possível testemunhar membros de uma “ancienne gauche” tentando desajeitadamente assumir causas da nova esquerda, mesmo que incompatíveis com o “pacote ideológico” da velha esquerda.

Afinal, não é possível ser uma feminista e, ao mesmo tempo, apoiar ditaduras como a soviética e a cubana, que fossilizaram estruturas sociais machistas e misóginas, como todo regime autoritário fez. Apesar de terem mantido agremiações de “mulheres pela revolução”, estas nada mais eram do que grupos rigidamente controlados pelo “partido”, com um discurso de emancipação de classe pleno de chavões militantes e totalmente desconectado, na prática, da agenda das feministas que revolucionavam os costumes no Ocidente democrático.

O que aconteceu a Olga Freidenberg na URSS caracteriza bem a maneira como regimes de extrema esquerda tratavam tais questões. Prima de Boris Pasternak, ela escreveu o primeiro livro sobre gênero e literatura da história, mas teve que lidar com a censura sobre sua obra (jamais liberada) e com a brutal pressão da ditadura soviética, que a forçava a calar sua retórica considerada “subversiva” e a utilizar os rígidos manuais de doutrinação fornecidos pelo governo para suas aulas19. Tudo indica que somente permaneceu viva por influência de seu famoso primo (ele mesmo censurado pela ditadura). Até hoje, a sociedade russa – ainda patriarcal e atrasada para os padrões atuais – paga seu preço por esse longo período de retrocesso de direitos civis fundamentais. O fato, por sinal, de militantes de extrema esquerda de ontem e de hoje não saberem quem foi alguém como Olga Freidenberg é prova de seu alto grau de alienação ideológica e de sua incapacidade de se conectar a contento com uma pauta realmente progressista.

Não é possível, também, defender direitos da comunidade LGBT e, ao mesmo tempo, apoiar a ditadura que prendeu, torturou e provocou a morte do escritor Reinaldo Arenas, pelo singelo fato deste ser um “maricón subversivo”. A atual instrumentalização da causa LGBT por alguém como Mariela Castro também é emblemática da incompatibilidade entre o velho e o novo no âmbito da esquerda. Até hoje, ela nega que tenham existido campos de trabalhos forçados para homossexuais (existiram até o início dos anos 1980!) e campos de “quarentena forçada” para HIV soropositivos (existiram até meados dos anos 1990!) em seu país e não tem pudor de isolar e de reprimir todos os grupos de gays e de lésbicas que não são automaticamente alinhados com a ditadura20. Trata-se de um perfeito exemplo de “pinkwashing”21.

O que os movimentos da nova esquerda dos países democráticos provaram, acima de tudo, foi que a sociedade somente evolui em um ambiente de mínima liberdade civil. Governos reacionários, de direita ou de esquerda, não permitem isso. Membros da esquerda tradicional tentando assumir a pauta da nova esquerda parecem elefantes tentando, em vão, andar em uma loja de cristais.

O raciocínio é semelhante para o espectro ideológico da direita em países como o Brasil, de evolução democrática claudicante. Muitas vezes, uma antiga direita tenta assumir uma pauta libertária e somente consegue ser reacionária e autoritária, algo que será tratado em texto específico.

Quem dita a nova pauta?

Caetano Veloso, em entrevista de outubro de 2017, define bem a questão: “Temas como a luta contra a desigualdade, os avanços sociais, como união estável de casais homoeróticos, reconhecimento do racismo estrutural da sociedade brasileira, defesa dos direitos da mulher, com atenção para a mais abrangente possível descriminalização do aborto, enfim, assuntos que eram bandeiras da contracultura dos anos 1960, ganharam força (inclusive conquistando as esquerdas, que tinham esses temas como desvios pequeno-burgueses)”22. Até a questão da desigualdade, bastante cara à antiga esquerda, é hoje objeto de intensa discussão por parte de ícones da nova esquerda, desde Krugman até Piketty, mas em um viés bem distante da verdadeira prisão ideológica que é enfrentar o problema por meio de um pueril discurso revolucionário, messiânico e salvacionista, que sempre descambou em tiranias.

Seria interessante a busca de uma melhor compreensão acerca dessa nova configuração da esquerda. Assim como os marxistas revolucionários fizeram uma crítica fundamental aos horrores dos imperialismos na virada do século XIX para o XX, mas já viveram seu tempo, também esses movimentos da segunda metade do século XX, bastante mal compreendidos, foram e são importantes para impor uma pauta que não era valorizada, na prática, pela esquerda tradicional. Não por acaso, os “alienados”, no entender da esquerda e da direita tradicionais, findaram por ditar os principais pontos das reivindicações do novo progressismo.

Para um texto acerca do mesmo tema e mais focado no Brasil e em suas particularidades, confira este post.

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Fontes:

  1. Hobsbawm, Eric. The Age of Extremes. 1914-1991. New York: Vintage, 1996.
  2. Aron, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Tradução de Jorge Bastos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
  3. Calligaris, Contardo. Viajar a Cuba é conhecer a diferença entre comunismo ideal e real, Folha de São Paulo, São Paulo, 19 out. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2017/10/1928231-viajar-a-cuba-e-conhecer-a-diferenca-entre-comunismo-ideal-e-real.shtml>. Acesso em: 23/10/2017.
  4. Merleau-Ponty, Maurice. As Aventuras da Dialética. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  5. Bernstein, Eduard. Evolutionary Socialism: A Criticism and Affirmation. New York: First Key Press, 2013.
  6. Piketty, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Translated by Arthur Goldhammer. Boston: Belknap Press, 2014.
  7. Martins, João Roberto, Filho. Os Estados Unidos, a Revolução Cubana e a contra-insurreição. Revista de Sociologia Política, Curitiba, no. 12, 1999.
  8. Aznarez, Juan Jesús. Cuba renega o russo pelo inglês, El País, Madri, 05 set. 2015. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/04/internacional/1441391471_927978.html>. Acesso em: 23/10/2017.
  9. Inglehart, Ronald. The Silent Revolution: Changing Values And Political Styles Among Western Publics. Princeton: Princeton University Press, 1977.
  10. Idem. Postmaterialism  Disponível em: <https://global.britannica.com/topic/postmaterialism>. Acesso em: 17/09/2016.
  11. Ibidem.
  12. Ibidem
  13. Ibidem.
  14. Sampaio, Jáder dos Reis. Revista de Administração USP, São Paulo, v.44, n.1, p.5-16, jan./fev./mar. 2009.
  15. Inglehart, Ronald. The Silent Revolution in Europe: Intergenerational Change in Post-Industrial Societies. The American Political Science Review, Washington, vol. 65 n. 4, pp. 991-1017, 1971.
  16. Savage, James. Postmaterialism of the Left and Right: Political Conflict in Postindustrial Society, Comparative Political Studies, Thousand Oaks, vol. 17, n. 4, pp. 431-451, 1985.
  17. Fornatale, Pete. The Who vs Abbie Hoffman: celebrating Woodstock’s 40th anniversary, Huffpost, New York, 09 mar. 2009. Disponível em: < https://www.huffingtonpost.com/pete-fornatale/the-who-vs-abbie-hoffman_b_250883.html>. Acesso em: 23/10/2017.
  18. Ash, Timothy Garton. Facts are subversives: Political Writing from a Decade Without a Name. London: Atlantic Books, 2010.
  19. Pasternak, Boris Leonidovich. The Correspondence of Boris Pasternak & Olga Freidenberg 1910-1954. Translated by Elliott Mossman and Margaret Wettlin. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1982.
  20. Lavers, Michael K. Amid change, LGBT Cubans face lingering challenges, Washington Blade, 27 mai. 2015. Disponível em: < http://www.washingtonblade.com/2015/05/27/amid-change-lgbt-cubans-face-lingering-challenges/>. Acesso em: 11/11/2017.
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  22. Gonçalves, Marcos Augusto. No momento, esperanças são menores do que preocupações, afirma Caetano, Folha de São Paulo, 29 out. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/10/1930993-no-momento-esperancas-sao-menores-do-que-preocupacoes-afirma-caetano.shtml>. Acesso em: 02/11/2017.