A busca por padrões que expliquem a realidade e a tendência ao tribalismo são características bem descritas da espécie humana. Tais elementos estão presentes, desde sempre, nas mais variadas maneiras de se interagir socialmente, passando por torcidas organizadas de times de futebol, até agregados político-ideológicos ou religiosos.
Um elemento comum a tais grupamentos é a tendência a se construir um discurso homogêneo e aglutinador. Não é necessário que ele seja compatível com a realidade. Um arremedo de verossimilhança, por vezes frágil, somado ao fortalecimento de dogmas internos e à demonização de pretensos inimigos são elementos suficientes.
Como verdadeiro exercício de adicção, busca-se a exacerbação das sensações (1) de pertencimento a uma facção virtuosa, (2) de capacidade de apreensão de uma verdade sutil, que escapa à maioria dos limitados seres humanos e (3) de uma luta justa contra um inimigo poderoso e opressor.
Desnecessário dizer que, no campo da política, a descrição acima pode dizer respeito a grupos pertencentes a qualquer espectro ideológico, à direita ou à esquerda. Felizmente, grupos moderados, também de ambas matrizes ideológicas, existem e estão mais desconectados dessas amarras.
Conspiracionismo
Dentro desse pacote sectário, descrições conspiracionistas da realidade são bastante comuns. Seu objetivo é, como já pontuado, fortalecer as “verdades” de alguns grupos e imputar “pecados” a determinados inimigos, além de aglutinar as pessoas suscetíveis a tais descrições enviesadas do mundo.
Nos últimos dias de 2019, fomos brindados com um exemplo muito didático. Sua mecânica de difusão, sua capacidade de contaminar uma determinada facção e sua fugacidade foram bastantes paradigmáticos desse fenômeno. O caso merece, assim, ser descrito.
A primeira observação a ser feita é reiterar que a tendência ao conspiracionismo e à sedução por explicações enviesadas e simplificadoras não é exclusiva de um só grupo. No caso aqui citado, os “inimigos” (assim considerados ou autoassumidos) da facção política utilizada como exemplo sofrem da mesma fraqueza e têm suas próprias descrições exóticas da realidade.
O caso Flávio B.
Em meados de dezembro de 2019, pouco antes do Natal, surgiu e foi difundida uma hipótese curiosa relacionada à mídia “mainstream”. Segundo essa tese, jornais e sites noticiosos ligados à “grande mídia” – como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo, entre outros -, teriam começado a esconder o sobrenome do senador Flávio Bolsonaro de suas manchetes.
Como se sabe, Flavio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, foi implicado em um escândalo ligado à cobrança e à apropriação de parte do salário de seus antigos assessores, uma prática conhecida como “rachadinha” e considerada ilegal. Além disso, a ligação do senador com pessoas pertencentes a grupos criminosos, conhecidos como milícias, tem gerado desgastes.
A narrativa (utilizemos esse termo da moda) conspiracionista foi a seguinte: jornais e sites noticiosos ligados à “grande imprensa” teriam, a partir de certo momento, começado a esconder o sobrenome “Bolsonaro” das manchetes ligadas a tais escândalos, utilizando somente o nome “Flávio”. O objetivo seria óbvio para alguns grupos críticos ao senador. A mídia mainstream estaria protegendo Flávio Bolsonaro e escondendo a realidade de seus leitores, enganados pelas manchetes incompletas.
Tal hipótese foi replicada à exaustão em redes sociais, notadamente no Twitter e no Facebook. O mais impressionante foi o fato de que até acadêmicos e jornalistas, alguns de renome, defenderam a veracidade e a relevância dessa queixa.
Seria evidente, assim, que veículos jornalísticos como a Folha de São Paulo e O Globo estariam protegendo a família Bolsonaro. Sites hiperpartidários (de desinformação) ligados à esquerda fizeram artigos “provando” tal tese, ao replicar manchetes do Estadão ou da Folha (mesmo que as reportagens mostrassem fotos em destaque de Flávio Bolsonaro).
Alguns jornalistas e estudiosos políticos tentaram, com enormes dificuldades e tendo que aturar reações irascíveis, mostrar que esse furor consistia de uma análise deturpada e enviesada da realidade, podendo levar à demonização da imprensa e ao desgaste de instituições importantes para o ambiente democrático.
Como exemplo, cite-se um tuíte do escritor Antonio Prata:
Galera, o Bolsonaro falou uma semana antes de ganhar que o Brasil sem a Folha ficava melhor. Desde que ganhou, ele tá em guerra com a Folha. Qual seria exatamente a estratégia da Folha em proteger o Bolsonaro escrevendo Flavio B.?! Não faz sentido esta teoria conspiratória.
Houve reações emocionadas ao tuíte, típicas de militantes com maior carga de alienação ideológica. Uma manifestação, contudo, chamou a atenção. Trata-se da resposta da excelente acadêmica Rosana Pinheiro-Machado, que não pode ser acusada de incapacidade analítica perante a realidade:
Antônio: O ponto não é crer em teoria conspiratória. O ponto é apenas que várias publicações nos últimos dias apareceram sem sobrenome. Nós, leitores e cidadãos, cobramos para que não se perca o poder de nomear. Faz parte do jogo 😉
Seguiram-se várias argumentações, como o fato de que, mesmo nas manchetes em que o sobrenome foi omitido, fotos deixavam clara a referência ao filho do presidente. Além disso, o termo “Caso Flávio” poderia ser considerado de fácil entendimento e de ligação automática ao senador.
Do outro lado, a continuidade do velho cacoete de se bater na mídia jornalística tradicional, que era apelidada de Partido da Imprensa Golpista (PIG) durante os governos do Partido dos Trabalhadores, estaria justificada pelo fato óbvio de que “várias publicações nos últimos dias apareceram sem sobrenome”.
Análise dos fatos e dos dados disponíveis
Mas esse fenômeno era tão óbvio assim? A percepção de ocultação do sobrenome do senador teria aderência à realidade? A certeza em relação a isso não poderia ser fruto da aceitação automática de uma narrativa que se amoldaria às crenças de quem a considerou verossímil?
O jornalista Marcelo Soares tentou finalmente analisar isso de maneira mais objetiva. Fazendo, já há algum tempo, um trabalho de compilação e de montagem de um extenso banco de dados com os principais conteúdos de diversos veículos jornalísticos, ele tinha o substrato ideal para tirar essa estória (com “e” mesmo) a limpo. E assim o fez.
Utilizando seus precioso banco de dados, pesquisou a porcentagem de vezes em que os nomes “Flávio” e “Bolsonaro” apareciam juntos, em manchetes de notícias. Fez isso com a Folha de São Paulo, O Globo, Valor Econômico e Veja. Chegou ao ponto de filtrar falsos positivos, como as vezes em que o nome “Flávio” fazia referência ao governador do Maranhão, Flávio Dino.
Eis o resultado:
Vê-se que, na Folha de São Paulo, houve até um aumento percentual da utilização dos nomes “Flávio” e “Bolsonaro” juntos, nos últimos meses de 2019, mesmo com uma diminuição isolada no mês de agosto. No O Globo, os nomes apareceram juntos na quase totalidade das vezes, em qualquer mês. No Valor Econômico, também houve aumento da utilização conjunta dos termos no segundo semestre de 2019. No caso da Veja, houve uma diminuição pontual da utilização dos nomes juntos no mês de novembro de 2019, tendência logo revertida no mês seguinte. Mesmo na Veja, os nomes aparecerem em conjunto foi a regra no transcorrer do ano.
Esse levantamento mostrou a utilização maciça e consistente dos nomes “Flávio” e “Bolsonaro” juntos nas manchetes de alguns dos principais veículos jornalísticos do país, nominalmente os mesmos que foram acusados de esconder o sobrenome “Bolsonaro”.
Fica claro que uma estória contada a respeito de um tema, utilizando exemplos anedóticos e isolados, ganhou uma armadura de verdade que conseguiu contaminar até mesmo algumas mentes aguçadas (mas aparentemente vulneráveis à emoção). Em relação a militantes mais básicos, então, foi uma festa, verdadeiro rolo compressor.
Para se contrapor a esse conspiracionismo, não foi necessário sequer adentrar no fato notório de que a família Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis nutrem um desprezo enorme por esses veículos jornalísticos.
O apelo das teorias conspiratórias
O que leva indivíduos ou grupos inteiros a assumirem “verdades falsas” é alvo de debates há tempos.
Podem-se destacar alguns pontos, não exaustivos, que ajudam a entender o fenômeno:
- O lamentável vício de se achar que o “povo” tenha uma capacidade de entendimento limitada, podendo ser facilmente ludibriado, e que uma parcela iluminada e bem intencionada da sociedade deve vigiar para que isso não aconteça;
- A tentativa de explicar o fato “alarmante” de o povo em peso não estar querendo tomar medidas engajadas contra o governo de um grupo oponente, algo obviamente causado pela manipulação da mídia;
- Necessidade de pertencimento a um grupo virtuoso que consegue perceber as sutilezas da realidade, escondidas dos que não têm essa capacidade, desmascarando, assim, as forças mal intencionadas e opressoras (característica “gnóstica” típica da retórica extremista do século XX – à direita e à esquerda).
O mais alarmante no episódio Flávio B. foi, a par da rapidez com que se instalou, o fato de que uma parcela relevante de acadêmicos(as) e de jornalistas se mostrou vulnerável a uma narrativa fraca e desconectada da realidade objetiva, como demonstrado por simples análise estatística. Por mais que seja algo pontual e, até, desimportante, o caso se reveste de força didática, ao reproduzir (como diria Bourdieu) um mecanismo similar ao de constructos conspiracionistas de abrangência e de consequências bem maiores.
E vale a pena investir em uma teoria conspiratória tão simplória, a ponto de ser facilmente descartada pelos fatos? Para os grupos sectários que criam ou alimentam tais estórias, vale muito a pena, sim. O caso Flávio B. é uma prova disso. O fortalecimento das sensações de pertencimento a um grupo diferenciado e de capacidade de apreensão da “verdade” são estímulos suficientes.
Uma característica desses episódios é a rapidez com que se esvaziam, comparável à ligeireza com que se instalam. Muitos dos que replicaram esses pretensos fatos não alcançam o ponto no qual a teoria foi cabalmente refutada, cristalizando em sua mente o conteúdo conspiratório original. Outros não se alteram, mesmo diante dos fatos que esvaziam a conspiração, ignorando-os solenemente e continuando a replicar a estória, para eles carregada de apelo.
Rapidamente, a discussão perde a capacidade de viralizar e de ser tendência nas redes sociais. Nesse ponto, uma multidão já teve reforçadas suas verdades ideológicas e o episódio, esquecido, transformou-se em mais um tijolo do muro sectário que separa determinado grupo dos outros e da própria realidade. Na semana seguinte, uma nova discussão vai se tornar viral e se converterá em mais um tijolo nessa muralha.
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P.S.: Quer conferir mais um artigo da série “Vícios das emoções políticas”? Veja este aqui, sobre nazismo e fascismo serem considerados, por alguns, como tendências ideológicas de esquerda.
P.P.S.: Outro artigo estreitamente ligado a emoções polítcas e a teorias conspiratórias é este aqui, sobre o recrudescimento do antissemitismo, calcado, como sempre o foi, em forte conspiracionismo.