Estima-se que “Ivan IV, O Terrível”, tivesse a seu dispor mais de 4.000 mercenários no final do século XVI. O líder russo, famoso por sua crueldade, não se importava com isso, contanto que fizessem o que deles se esperava: lutar com afinco. Governantes russos sempre usaram esse artifício, desde a época em que contratavam vikings para sua proteção.
No século XXI, mercenários supostamente contratados pelo governo russo são bem mais sofisticados. Têm à disposição armas avançadas e bastante letais (a maioria de origem russa e chinesa) e, não raro, são egressos de grupos militares de elite, como o temido Spetsnaz, da própria Rússia. As ex-repúblicas soviéticas são a origem de vários deles. O que quase todos têm em comum, contudo, é serem russos étnicos.
Группа Вагнера
O principal grupo mercenário russo da atualidade é o “Wagner Group” (Группа Вагнера). Trata-se de um exército privado que não se limita a proteger instalações estratégicas ou a fazer escoltas (como a “Academi” – antiga “Blackwater” – dos Estados Unidos). Participar de batalhas, às vezes sangrentas, faz parte do dia a dia do grupo.
Um de seus pretensos patronos é Yevgeniy Prigozhin, um oligarca russo e talentoso chef de cozinha(!) recentemente ligado à conexão russa de desinformação nas eleições presidenciais dos EUA em 2016. Seu líder operacional é Dmitry Utkin, nascido na Ucrânia e ex-integrante dos Spetsnaz e da inteligência militar russa (GRU).
Utkin, além de outros de seus colegas, é fã do Terceiro Reich. O grupo mercenário foi nomeado em homenagem ao compositor preferido de Adolf Hitler, Richard Wagner. Uma boa parte de seus integrantes, notadamente os membros de sua liderança, são pertencentes à “Rodnovery” ou Fé Nativa Eslávica ou Paganismo Eslávico. Trata-se de um culto pagão baseado em mitologias eslavas ancestrais, de viés ultranacionalista, bastante reacionário nos costumes e que entende a sociedade liberal do Ocidente como degenerada.
Já ouvimos isso antes? Sim, tanto na Alemanha quanto da União Soviética dos anos 1930. O próprio Stálin, para enfraquecer o cristianismo ortodoxo (apesar de ele mesmo ter sido um cristão fervoroso na juventude), estimulou o estudo e o ensino das manifestações eslavas pagãs pré-cristãs, acusando o cristianismo de ter destruído a “vida comunal” que existia anteriormente. Isso estimulou a formação de novos grupos neo-pagãos, que não tiveram uma relação estável com a ditadura soviética. A partir de então, porém, não saíram mais de cena, principalmente na Rússia.
Esse caldo neonazista, ultranacionalista russófilo e defensor da ordem contra a degeneração do mundo moderno é o que está no cerne do Wagner Group. Apesar disso tudo, vários de seus membros parecem ter como incentivo maior o salário, bem acima da média de seu país. E nem todos são neonazistas, a despeito de sua liderança e de muitos de seus membros claramente o serem.
Suas atividades parecem ter se iniciado em 2014, na Ucrânia, quando participaram da invasão e anexação da Crimeia e da ofensiva do Donbass, ao lado de separatistas de etnia russa. Depois, tiveram intensa presença na Síria e, até, no Sudão, na Líbia e na República Centro Africana. O mais das vezes, protegendo interesses escusos do governo russo, como acesso a recursos minerais.
Não tendo como se registrar formalmente na Europa ou nos EUA e evitando se formalizar na Rússia, o grupo encontrou um local tranquilo para ter sua sede empresarial na Argentina, à época sob o governo de Cristina Kirchner. O atual presidente argentino, Mauricio Macri, não se importou com isso até o momento.
Na Rússia, grupos militares privados são proibidos, o que não impede o Wagner Group e outros grupos menores de agirem intensamente em prol do governo russo.
Venezuela
E o que um punhado de neonazistas armados até os dentes e com treinamento de alto nível tem a ver com a Venezuela e com Nicolás Maduro?
No dia 25 de janeiro de 2019, a agência Reuters publicou um artigo, seguido por vários outros de fontes ligadas a analistas militares, informando que ao menos 400 (quatrocentos) membros do Wagner Group haviam chegado à Venezuela, para fazer a proteção de Nicolás Maduro.
Como se sabe, Maduro implantou um verdadeiro regime autoritário em seu país, reprimindo fortemente o próprio povo, enquanto sua política econômica disfuncional e extremamente corrupta causou uma séria crise famélica na população, ao estilo das velhas ditaduras ultrarreacionárias do século XX.
Não se sabe, ao certo, quem está pagando pelos serviços desses mercenários eslavos, mas eles foram supostamente enviados a mando do governo russo para proteger interesses da Rússia na Venezuela. Vários bilhões de dólares russos foram disponibilizados a Maduro, em troca de vantagens na exploração do petróleo venezuelano.
Além disso, estão fazendo a proteção pessoal do próprio Nicolás Maduro, em um claro sinal de que este não tem mais como garantir a lealdade dos militares venezuelanos de médio e de baixo escalão, que sofrem com o colapso do país e que não têm as benesses da alta cúpula militar, ligada aos lucrativos mercados de bens essenciais, de tráfico de drogas e de contrabando.
A operacionalização do envio dessa tropa se deu por intermédio do governo cubano. Aviões fretados levaram o grupo paramilitar e suas armas até Havana e, de lá, o aparato seguiu em voos comerciais “usuais” para Caracas.
Uma fonte anônima ligada ao grupo disse que integrantes do mesmo já estavam presentes na Venezuela por ocasião da reeleição de Nicolás Maduro, em maio de 2018. Essa eleição foi considerada farsesca até pelo Syriza, partido de extrema esquerda grego e que entende, juntamente com seus colegas da União Europeia, que Maduro perdeu a legitimidade e implantou uma ditadura na Venezuela, ao estilo do Zimbábue ou de Angola, com pleitos eleitorais fictícios.
Hoje, Maduro somente é apoiado (1) por grupos sectários e anacrônicos ligados à Velha Esquerda (“Ancienne Gauche”) de viés autoritário, como alguns dos partidos de esquerda da América Latina, ou (2) por governantes autocratas que têm interesses objetivos ligados à manutenção do regime, como Erdogan, Putin ou Xi Jinping.
Significado
A proximidade de um grupo neonazista com Nicolás Maduro é uma contradição? Seria uma prova de que, na verdade, nazi-fascismo é de esquerda, como defendem alguns? A resposta às duas perguntas é “não”.
O que melhor descreve o fenômeno é a categoria conhecida como Teoria da Ferradura, elaborada pelo pensador francês Jean Pierre Faye e exposta em seu livro “Le Siècle des Idéologies”. Para ele, a gradação entre extrema esquerda e extrema direita não se daria de maneira linear, como em uma reta. A melhor maneira de caracterizar as diferenças ideológicas seria um esquema com formato de ferradura, onde os extremos estariam mais próximos entre si do que do centro. Apesar disso, manteriam suas identidades separadas.
O mais adequado à realidade seria considerar o centro do espectro político, onde estão a centro-esquerda e a centro-direita, como sendo dotado de uma carga mais liberal, no sentido clássico. Já os extremos do espectro político seriam, ambos, contaminados por um forte antiliberalismo, tendendo inescapavelmente ao autoritarismo e ao reacionarismo (por definição). Daí sua proximidade.
Não é à toa que Justin Trudeau (Canadá) e Emmanuel Macron (França) se opõem a Maduro com veemência e que Díaz-Canel (Cuba) e Recep Erdogan (Turquia) o apoiam incondicionalmente. Não é preciso muito esforço para adivinhar com qual dessas duplas de líderes um grupo neonazista combina mais.
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Fontes e sugestões de leitura:
Agence France-Presse. What is the Wagner Group? Reporters’ deaths put spotlight on Russia’s shadowy private army. South China Morning Post, Hong Kong. 02 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.scmp.com/news/world/russia-central-asia/article/2157924/what-wagner-group-reporters-deaths-put-spotlight>. Acesso em: 26/01/2019.
Andriukaitis, Lukas. #Putin at War: Tributes to Russian Mercenaries from Ukraine to Syria. Digital Forensic Research Lab – Media, Washington. 09 de março de 2018. Disponível em: < https://medium.com/dfrlab/putinatwar-tributes-to-russian-mercenaries-from-ukraine-to-syria-82def516bfcf>. Acesso em: 26/01/2019.
Bruyére-Ostells, Walter. História dos Mercenários: de 1789 aos nossos dias. Tradução de Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2012.
Faye, Jean Pierre. Le Siècle des Ideologies. Paris: Armand Colin, 1996.
Hauer, Neil. Russia’s Favorite Mercenaries. The Atlantic, Boston. 27 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2018/08/russian-mercenaries-wagner-africa/568435/>, Acesso em: 27/01/2019.
Peter, Laurence. Syria War: Who are Russia’s shadowy Wagner mercenaries? BBC News, Londres. 23 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-43167697>. Acesso em: 26/01/2019.
The Moscow Times. More Russian Fighters from Private ‘Wagner Group’ Die in Syria. Moscou, 22 de março de 2017. Disponível em: <https://www.themoscowtimes.com/2017/03/22/more-undocumented-russian-fighters-from-private-wagner-group-die-in-syria-a57499>. Acesso em: 26/01/2019.
Tsvetkokva, Maria; Zverev, Anton. Exclusive: Kremlin-linked contractors help guard Venezuela’s Maduro – sources. Reuters, Moscou. 25 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-venezuela-politics-russia-exclusive/exclusive-kremlin-linked-contractors-help-guard-venezuelas-maduro-sources-idUSKCN1PJ22M>. Acesso em: 26/01/2019.