Quais foram as primeiras leis que surgiram na humanidade? Por óbvio, não se faz referência aqui a diretivas estritamente religiosas, apesar de algumas destas terem tido influência e força sobre sociedades inteiras. Antes, o objeto desta análise são leis mais vinculadas ao convívio social estrito e advindas deste. Seriam aquelas que surgiram, assim, como os primeiros arremedos de regramento dotados do poder de vincular a sociedade e consideradas necessárias para estabilizar uma vida em comunidade.
Deve-se lembrar que as primeiras leis com tais características nasceram sem a participação de um órgão legislador independente. Por vezes, o órgão legislador era pura e simplesmente um soberano. Na verdade, eram normas impostas por uma porção restrita da sociedade, aquela dotada de poder à época. Analisar essas sociedades ancestrais estritamente pela medida de nosso olhar fortemente influenciado pelos ideais iluministas é, no entanto, um exercício de ingenuidade e de anacronismo.
Apesar disso, seu estudo não é irrelevante, até pelo fato de alguns governos de nossos dias parecerem tomar como modelo esse modo ancestral de manter o poder e de impor leis, algo que já deveria ter se perdido no tempo.
Outro lembrete importante é o de que não há o intento, aqui, de se elencar de maneira inequívoca e infalível a lista de leis mais antigas do planeta. Esse é o tipo de assunto que não guarda unanimidade e que pode mudar, à medida que novas pesquisas são desenvolvidas.
Sendo assim, eis uma pequena lista que pode ser considerada bem razoável:
China – Imperador Fuxi (2853 a.C.)
Como de hábito, a China aparece em lugar de destaque nesse tipo de lista. Segundo inscrições em bronze da época, havia um código de leis vigente durante o reinado do legendário Imperador Fuxi (2853-2738 a.C.). Essa foi a primeira menção na história humana a tal tipo de instrumento legal. O termo “legendário” não é utilizado por acaso quando se faz referência a Fuxi. Apesar dos inúmeros indícios, não há consenso em relação à própria existência do imperador. Sendo assim, algumas listas preferem não citá-lo como o mais remoto legislador.
Mesopotâmia (Lagash) – Urukagina (Uruinimgina) (2351-2342 a.C.)
Urukagina – ou Uruinimgina – foi governante de Lagash (Lagaš), onde hoje fica parte do Iraque, na antiga Mesopotâmia (“entre rios”). De seu código, restaram pequenos trechos e vários documentos que o citam como uma espécie de consolidação de normas. Tais achados podem sustentar concretamente a hipótese de que este tenha sido o primeiro conjunto de leis da humanidade.
O ponto curioso é que seu governo foi caracterizado por grandes reformas consideradas “liberalizantes” (em seu sentido clássico) para padrões atuais. Expropriou terras da antiga elite e as distribuiu entre os de menos posses, eximiu viúvas e órfãos do pagamento de impostos, diminuiu a quantidade e o poder dos coletores de tributos, garantiu a propriedade de pequenos lotes de terra e de bens móveis dos pobres frente ao poder dos mais poderosos etc. Seu objetivo seria acabar com as injustiças e com a opressão presentes nos governos anteriores, tendo como meta um alto grau de liberdade e de igualdade, em equilíbrio balanceado.
Nessa época houve, por sinal, o primeiro registro da utilização do conceito de “liberdade” (amagi/amargi, o “retorno à mãe”), cunhado em referência ao processo de reforma social em curso. Interessante destacar, contudo, sua posição em relação às mulheres: acabou com a possibilidade de poliandria e previu o apedrejamento de mulheres em certos casos. Por conta disso, é considerado por alguns como o “pai do patriarcado”, o que talvez seja um exagero. Por outro lado, as mulheres foram valorizadas na elite governamental, com uma representação de mais de mil delas, onde antes seriam poucas dezenas.
Há relatos de que o excessivo radicalismo de Urukagina ao implantar sua reforma, a queda de arrecadação e uma gestão algo errática levaram à desorganização social de seu reino e posterior invasão por parte de uma cidade próxima, na época da formação da Suméria unificada. Pode-se dizer que esse modelo, o de reformas liberalizantes radicais que acabam perdendo o rumo e redundando em situações sofríveis, acabou se repetindo por incontáveis vezes na história humana.
Mesopotâmia (Ur) – Código de Ur-Nammu (2050 a.C.)
Ur-Nammu foi um governante sumério de grande habilidade militar e administrativa. Seu código foi encontrado, já na década de 1950, pelo famoso historiador e assiriólogo da Universidade da Pensilvânia Samuel Noah Kramer (nascido em Kiev, na Ucrânia). Por ter sido o primeiro código do qual se encontrou uma cópia, é considerado por alguns como o mais antigo código legal escrito da humanidade. Infelizmente, seu estado de conservação não era tão bom e somente cinco artigos estavam legíveis em sua inteireza.
A característica interessante desse conjunto legal era a valorização da pena pecuniária, no lugar da pena de retaliação ou taliana. É uma ancestral tentativa de se valorizar a restauração do “status quo ante” (estado anterior) de uma situação jurídica sem, contudo, exacerbar o prejuízo social da conduta com a própria pena. Teve validade em parte do período de unificação da Suméria.
Mesopotâmia – Código de Hamurabi (1770 a.C.)
O Código de Hamurabi talvez seja o conjunto de leis mais famoso da antiguidade. Hamurabi (Khammu-rabi) foi rei da Babilônia durante o século XVIII a.C. É tido pelos historiadores como um destacado estrategista político, com amplo apoio do povo que governava. Em sua época, a lógica de retaliação, ou regra taliana, foi amplamente utilizada, configurando o que futuros penalistas chamariam de “Direito Penal de vingança”. O famoso bordão “olho por olho, dente por dente” resume bem essa posição.
A expressão está presente na Torá e na Bíblia cristã. Nessas obras, é considerada paráfrase de normas contidas no antigo Código de Hamurabi. No livro sagrado dos judeus, ela está presente no Êxodo (21-24) e no Levítico (24, 19-21). Há quem entenda, inclusive, que várias outras partes da Torá são adaptações de trechos do Código de Hamurabi. No livro sagrado dos cristãos, além das referências acima, está presente no Evangelho Segundo Mateus (5, 38-42). Nesta última passagem, a expressão foi citada para ser criticada e negada por Jesus, na famosa passagem do “ofereça a outra face”.
As punições previstas no Código de Hamurabi variavam bastante entre os indivíduos, segundo o estrato social ao qual pertenciam e, também, seu gênero (mulheres tinham punições mais pesadas). Valorizou, contudo, a presunção de inocência como elemento importante de manutenção da estabilidade social. A punição para uma falsa acusação era a morte. Havia normas mais progressistas, como a previsão de salário mínimo para várias profissões e o perdão de dívidas aos pobres em caso de inadimplência por motivo de força maior.
Hamurabi não ficou conhecido, em sua época, como legislador, mas, antes, como construtor de uma ampla infraestrutura e como estrategista hábil. O Código de Hamurabi, curiosamente, foi achado (no século XX) onde hoje está o Irã (antiga Pérsia) e não onde teve vigência, entre os rios Tigre e Eufrates (atual Iraque).
Uma curiosidade: durante entrevista em abril de 2016 à rádio WHAM 1180 AM, de Rochester, NY, Donald Trump, que viria a ser presidente dos EUA, disse que seu trecho preferido da Bíblia era o “olho por olho, dente por dente”, intimamente ligado, como se viu, ao anterior Código de Hamurabi.
China – Dinastia Zhou (1027-221 a.C.)
De volta à China, a Dinastia Zhou foi a mais longeva da história daquele país. Tratava-se do início do período feudal chinês, caracterizado pelo sistema “Fengjian”, com várias cidades-estados tornando-se subordinadas ao poder central. O modelo perdurou, no entender de alguns, até o início do século XX, com o fim da Dinastia Qing.
A famosa, preparada e eficiente estrutura burocrática do Estado, caracterizada pelo mandarinato, começou a se formar nesse período, tendo atingido seu auge durante a posterior Dinastia Ming. Havia uma forte carga de meritocracia e seleções consideradas dificílimas e de alto padrão para o acesso aos cargos do serviço público.
Na Dinastia Zhou, durante a qual viveram os pensadores Confúcio (551-479 a.C.) e Lao Tse (604-531 a.C.), foi elaborado o mais antigo documento legal chinês que sobreviveu à passagem do tempo: o código Kang Gao (séc. XI a.C.). A noção de graus de culpabilidade aparece claramente na lei, com a previsão de que mesmo os crimes mais simples mereciam punição se fossem realizados intencionalmente e de que mesmo os crimes mais graves mereciam punição mais leve, caso praticados involuntariamente. O sentimento do agente durante o ato tinha grande importância e os juízes deveriam decidir isso no caso concreto. A regra da analogia, também, poderia ser utilizada para preencher os vazios da lei diante dos fatos. A importância da publicidade das leis foi registrada, assim como previsões de como operacionalizar essa propaganda legal.
Registre-se que, no transcorrer desse longo período, aconteceram debates acalorados acerca da melhor maneira de se aplicar as leis, segundo critérios jurisprudenciais e consuetudinários (common law, lei comum) ou segundo critérios mais estritamente legalistas (written law, lei escrita). Houve, assim, um grau considerável de sofisticação jurídica no transcorrer desse período.
Grécia (Rhodes) – Lex Rhodia (800 a.C.)
A ilha de Rhodes, ao sul da atual Grécia, era um Estado independente e dona de um robusto sistema de transporte e de comércio marítimos. Seu povo desenvolveu um conjunto de leis para disciplinar as disputas ligadas a essa atividade, sendo considerado o primeiro Código Marítimo da humanidade. Não foi encontrada uma cópia escrita da lei, mas sabe-se que foi utilizada até a época do apogeu do Império Romano, sendo referenciada e citada em inúmeros documentos legais desse período.
Algumas previsões do Direito Marítimo atual são baseadas em disposições da Lex Rhodia, como a compensação parcial do dono da carga marítima, na hipótese desta ser descartada no mar para salvar a embarcação e seus ocupantes, em caso de adversidades.
_______________________________________________________________________________________________
Fontes:
Bertman, Stephen. Handbook of life in ancient Mesopotamia. Oxford: Oxford University Press, 2005.
Bouzon, Emanuel. Origem e natureza das coleções do direito cuneiforme. Centro de Memória do Judiciário, Porto Alegre, vol. 2, n. 3, pp. 1–31, 2002. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v2n3/doc/01-Bouzon.pdf Acesso em: 20/09/2017.
Chao Liu, Charles. China’s lawyer system: dawning upon the world through a tortuous process. Whittier Law Review, Costa Mesa, n. 23, pp. 1037-1098, 2002.
Flower, Harriet I. The Cambridge Companion to the Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
Shabad, Rebecca. Donald Trump names his favorite Bible verse. CBS News, New York, 14 abr. 2016. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/donald-trump-names-his-favorite-bible-verse/ Acesso em: 20/09/2017.
Zhang, Jinfan. The Tradition and Modern Transition of Chinese Law. New York: Springer, 2014.
Bom isso é segundo o que a arqueologia achou. A China não é mais antiga que a África e Babilônia.
Os sumérios (4000 a.C. – 1900 a.C.)
Foi nos pântanos da antiga Suméria que surgiram as primeiras cidades conhecidas na região da Mesopotâmia, como Ur, Uruk e Nipur. Os povos da Suméria enfrentaram muitos obstáculos naturais. Um deles era as violentas e irregulares cheias dos rios Tigre e Eufrates. É impossível um povo sobreviver sem um código de leis.