Dá-se continuidade à lista de códigos legais relevantes mais ancestrais. No primeiro post acerca do tema, foram abordadas antigas normas da China, da Mesopotâmia e, até, da Grécia. Adentra-se, agora, ainda mais no período da Grécia Antiga, por meio da enigmática Esparta.

A construção de uma percepção quase mítica dessa famosa cidade-estado grega fez com que seu legado fosse manipulado e citado com grande frequência em exóticos exercícios de anacronismo histórico-social, pelos mais variados públicos, desde partidários dos grandes experimentos autoritários do século XX, até defensores da democracia, passando por fãs de Estados militarescos. Não por acaso, merece uma atenção especial.

Grécia (Esparta) – Leis de Licurgo (por volta de 700 a.C.)

Licurgo é considerado o grande líder e legislador responsável pelo apogeu de Esparta na Grécia Antiga. Não se sabe ao certo se realmente existiu ou se é figura lendária. Há relatos de que tenha se autoexilado ao fim da vida e de que um culto a sua pessoa tenha sido criado entre os espartanos após sua partida, durante as inúmeras décadas vindouras de utilização do arcabouço legal por ele criado. Essa adoração pode ter sido responsável pela aura lendária que veio a caracterizar o governante.

De todo modo, houve um longo período em que o conjunto legal dessa famosa cidade-estado manteve-se relativamente estável e ligado, sim, ao nome de Licurgo, quer este tenha ou não existido enquanto ser humano singular. As leis abrangiam os mais variados aspectos da vida, desde a estruturação de instituições importantes do governo, até hábitos diversos do cotidiano.

Diz-se que as virtudes básicas a serem perseguidas em Esparta seriam (1) a Igualdade, (2) o Treinamento Militar e (3) a Austeridade. Reduzir seus aspectos a esses pontos, no entanto, não faz jus à riqueza de sua sociedade.

Principais características

Ao contrário do que alguns pensam, a educação em Esparta era de alto nível em variadas áreas e expressamente prevista como de excelência na própria legislação, tendo sido elogiada até mesmo pelo ateniense Platão. A ideia de que a formação era eminentemente técnica e militar tem uma carga de exagero.

Outra característica era a determinação de que os espartanos somente teriam acesso aos bens necessários ao desempenho de suas designadas atividades e a de que os homens livres deveriam fazer suas refeições em comum, evitando-se, assim, a disseminação de diferenças e de desavenças sociais. A regra não era universal e sua observação variou no transcorrer do tempo, mas a expressão “vida espartana” passou a designar a manutenção de uma vida regrada e desconectada do supérfluo.

O Estado deveria controlar a produção econômica. Realizou-se uma reforma agrária, com distribuição de terras. A retirada dos cidadãos da atividade econômica individual, a vida austera e o compartilhamento forçado dos bens tinham por objetivo funcionar como fatores de coesão social, o que parece ter ocorrido de fato. As crianças deveriam ser sadias para que lhes fosse permitido continuar a viver e serem úteis ao Estado. A existência de servos de propriedade estatal, os hilotas, era fundamental para manter o nível de vida das elites burocrática, política e militar. Os autores da época não os consideravam escravos étnicos, mas, sim, subjugados pelo instituto da servidão.

A título de curiosidade: uma declaração de guerra contra os hilotas era renovada anualmente para justificar sua servidão a bem da coletividade e uma polícia secreta (Cripteia) era responsável pelo expurgo sazonal de seus líderes, que deveriam ser identificados e assassinados. O significado de “Cripteia” extrapola o de mera polícia secreta, mas não será abordado em suas minúcias aqui. Vários pontos lembram a descrição de uma típica ditadura totalitária do séc. XX (escolha a sua preferida, houve várias), mas é, de fato, a Grécia Antiga.

Uma criação mais original de Licurgo (ou de Esparta) foi a da “Gerúsia”, uma espécie de Senado ou de Conselho de Anciãos, formado por cerca de 30 membros e responsável por direcionar e avalizar as políticas públicas. Considerava-se que seus membros seriam verdadeiros representantes do desejo popular, até onde esse raciocínio era possível à época. Seria um “governo dos melhores”. Se a Gerúsia decidia por algo, então isso era, por consequência, o melhor para a população de Esparta.

Seu poder, no entanto, era temperado pelo “Damos”, uma assembleia formada por cidadãos (homens e livres, mas não necessariamente ricos) que se reunia para aprovar ou vetar propostas da Gerúsia, exercitando uma espécie de democracia direta. Esse arremedo democrático teve grande importância em alguns períodos do apogeu de Esparta. “Damos” era a versão dória da palavra que deu origem ao termo “democracia”.

A estrutura política contava, ainda, com os Éforos (grupo de cinco indivíduos), membros do governo eleitos pelos cidadãos e que juravam “pela cidade”, em um exemplo remoto de democracia representativa. Por último, havia os reis (dois indivíduos), que juravam por si mesmos, mas que findaram tornando-se praticamente inócuos do ponto de vista do poder real (“decorativos”, como se diz hoje acerca da realeza europeia).

A definição que fazia o Estado espartano de como deveria ser a criação dos indivíduos do sexo masculino ficou conhecida como Agogé e o termo pode ser grosseiramente desdobrado como uma educação muito rígida e doutrinária, voltada ao interesse da coletividade e da cidade.

Influência do legado espartano e manipulação histórica

Em termos de manipulação histórica posterior acerca da emblemática Esparta e dependendo do objetivo a ser alcançado, os comentadores dariam ênfase ora à “Gerúsia” ora ao “Damos”, enquanto caracterizadores do poder na cidade-estado, e utilizariam institutos como a “Agogé” e o rígido coletivismo espartano para defender algum ponto de vista, mesmo que historicamente distante.

Sua singular influência, contudo, remonta à própria Grécia Antiga. Platão fez inúmeras referências aos espartanos, principalmente em seu diálogo “As Leis”, apesar de ter criticado a cidade-estado no oitavo livro da “República”. Para Finley, contudo, várias descrições existentes nesta última obra parecem ser fortemente influenciadas pelas instituições e hábitos de Esparta, principalmente sua concepção fundamental de “comunidade total”. O famoso filósofo ateniense descreveu o que entendia ser um ideal social a ser perseguido (aquilo que atende hoje pelo nome de utopia).

É difícil, porém, não nomear a sociedade ideal apresentada por Platão como verdadeira distopia, na perspectiva de uma realidade pós-iluminista. É forçoso admitir, também, que o que aconteceu concretamente em Esparta, no que se refere a alguns aspectos da vida social, pode ser definido hoje como “inferno real” (para utilizar um termo desconectado da época).

Esparta era, no entanto, bem mais matizada do que isso. Seu habitantes já foram descritos como “os filósofos guerreiros”. Toda essa complexidade, encravada em plena Grécia Antiga, ou seja, durante um período singularmente rico em mudanças culturais e sociais, acabou sendo alvo de mitificações e virou prato cheio para criativas e parciais utilizações futuras.

Esparta e as ideologias extremistas

Alguns historiadores, por exemplo, enfatizam o fato de que Esparta, mais ainda do que Roma, foi um modelo clássico utilizado por Hitler para construir parte de sua ideologia. Isso se deveu a uma visão estereotipada da cidade-estado por parte do nazismo, aquela ligada à ideia de um cidadão-soldado, disposto a sacrificar-se pela coletividade, por seu governo e por sua pátria e à valorização de uma dura, doutrinária e disciplinada educação (a “Agogé”, comparada com a própria Juventude Hitlerista).

O próprio Hitler, sob forte influência do biólogo, filósofo e naturalista Ernst Haeckel, fazia menção direta a Esparta. A referência a hábitos eugênicos da sociedade espartana, como a eliminação de crianças consideradas imperfeitas, é o que remete mais diretamente ao terror nazista. Essa educação rígida, a formação técnica voltada aos interesses da sociedade e a hipervalorização da defesa da cidade-estado (pátria) também são características que levaram o Führer a dizer que “Esparta foi o primeiro Estado Völkisch!” (algo como um Estado de “populismo étnico-nacionalista”).

Essa maneira de entender o modo de ser espartano não contaminou somente a extrema direita totalitária. Também a extrema esquerda totalitária ficou encantada e não teve pudor em utilizar o modelo como referência. Para citar um só exemplo, Max Beer, famoso jornalista, economista e historiador marxista nascido na Alemanha, discorreu longamente acerca de Esparta e da legislação de Licurgo em sua obra “História do Socialismo e das Lutas Sociais”. Beer trabalhou no Instituto Marx-Engels de Moscou (então União Soviética) e ganhou grande reputação como historiador marxista. O título do capítulo III de sua obra supracitada é emblemático da opinião que tinha acerca da famosa cidade-estado: “O Comunismo em Esparta”.

Para ele, “quase todos afirmam que Licurgo foi o primeiro legislador que a tradição apresenta como autor de uma revolução comunista”, apesar de entender que se trata de uma figura lendária. Todos os espartanos, por conta da militarização, “sabiam manejar as armas”. Por conseguinte, “os ricos foram obrigados a aceitar a implantação do comunismo”. Segundo Beer, a constituição de Esparta era de natureza “comunista-militar”. Os servos hilotas “pertenciam ao Estado, como propriedade comum, e representavam os verdadeiros meios de produção”.

Ainda, o filósofo Platão era apresentado como “um Licurgo mais intelectualizado” e “o comunismo de Platão abrangia um domínio muito mais amplo”, pois este “tencionava implantar o comunismo em benefício de todos os gregos”. Já “Aristóteles era adversário declarado do comunismo” (atribuiu-se ao sábio de Estagira um poder de futurologia digno de uma pitonisa!).

No entanto, a acumulação de riquezas por meio dos saques e das conquistas, no entender do historiador alemão, “foi minando as bases comunistas da organização do Estado espartano” e este “perdeu a maior parte de suas qualidades”. Acrescenta que “a posse da riqueza provocou a ambição e a avareza e os prazeres materiais efeminaram os homens, corrompendo-os, levando-os à devassidão no amor e ao luxo”. Nesse contexto, Agis, um dos posteriores governantes de Esparta, mas ainda sob a legislação atribuída a Licurgo, é considerado por Beer como um “protomártir do comunismo”, pois tentou implantar reformas para restaurar as características do passado glorioso da cidade-estado, mas findou preso e executado.

Apesar de sua retórica anacrônica para os dias atuais, a comparação algo forçada do historiador marxista não parece de todo exótica. A manutenção de ume elite política, burocrática e militar às custas de uma enorme massa trabalhadora subjugada por uma estrutura de repressão estatal; a presença de uma polícia secreta com ampla licença para agir a favor da manutenção do “status quo”; a existência de um conselho de “sábios” que decidia em nome do povo (ênfase na “Gerúsia”, em detrimento do “Damos”); a estruturação de um amplo, rígido e fortemente doutrinário aparato educacional para preparar a população segundo diretivas estatais estritas (a “Agogé”, comparada agora com a Juventude Comunista), entre outras características, remetem, de fato, a vários experimentos de cunho reacionário e totalitário de engenharia social que foram típicos do século XX, tanto à esquerda quanto à direita do espectro ideológico.

De todo modo, o anacronismo da análise histórica realizada por Beer acerca de Esparta é muito claro, apesar de ser curiosa. Registre-se, a bem da verdade, que a tradição marxista de historiadores não se limitou a análises ingênuas, típicas de militantes e com forte contaminação ideológica como as de Beer, mas teve, também, a presença de historiadores da qualidade de um Eric Hobsbawm, dos maiores do século XX, que conseguiu utilizar o melhor da tradição marxista em um alto patamar de sofisticação, além de ter sido lúcido o suficiente para explicitar algumas limitações e incoerências das próprias bases do marxismo, principalmente no final de sua brilhante carreira.

As versões acima configuram adaptações de excertos do modelo espartano, tendo como objetivo a defesa de interesses exóticos de momento. Inserem-se no que Losermann chamou de “época dos espartamaníacos”, período que pode ser delimitado entre fins do século XIX e meados do século XX. Ainda hoje, a compreensão acerca do assunto é contaminada por essas verdadeiras desinformações.

Singularidade e importância histórica de Esparta

Pode-se lembrar, por último, que Esparta é festejada, por vezes de modo exagerado, como a responsável pela criação de um embrião da própria democracia. Essa visão dá grande ênfase à importância da instituição do “Damos”, a assembleia de homens livres que aprovava ou não as resoluções do Senado, utilizando o curioso critério de qual grupo fazia mais barulho durante as votações (o do “sim” ou o do “não”).

Esparta definitivamente não foi a Alemanha nazista, a Rússia comunista e muito menos um modelo paradigmático de democracia. Esparta foi Esparta, uma cidade-estado até hoje pouco conhecida em seus detalhes, apesar de sua fama, e comumente descrita por meio de simplificações e de manipulações históricas, o mais das vezes desonestas.

Durante esse rico período, tanto lá quanto em outras cidades-estados gregas, foram gestadas algumas das mais importantes instituições políticas e alguns dos mais marcantes modelos legais que viriam a caracterizar o que hoje entendemos por Estado de Direito, naturalmente em um nível primitivo, verdadeira pedra bruta a ser lapidada ainda por inúmeros séculos.

_______________________________________________________________________________________________

Fontes:

Beer, Max. História do Socialismo e das Lutas Sociais. Tradução de Horácio Mello. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1944.

Finley, Moses I. The Use and Abuse of History. Londres: Penguin, 1987.

Losemann, Volker. Classics in the Second World War. in: Bialas, Wolfgang, Rabinbach, Anson. Nazi Germany and the Humanities: How German Academics Embraced Nazism. London: Oneworld Publications, 2007, pp. 306-340.

Muñoz, Sara M. El mito de Esparta en el nazismo. Témpora Magazine de Historia, Sevilla, 26 mar. 2014. Disponível em: < http://www.temporamagazine.com/el-mito-de-esparta-en-el-nazismo/> Acesso em: 28/09/2017.

Nafissi, Massimo. Lycurgus, Spartan legislator. The Encyclopedia of Ancient History. Hoboken: John Wiley & Sons, Inc., 2013.

Wheeler, W. Lindsay. Doric Crete and Sparta, the home of Greek philosophy. Sparta: Journal of Ancient Spartan and Greek History, Nottingham, vol. 3, n. 2, 2007.